Longe dos octógonos de luxo e dos combates profissionais, a falta de regras e fiscalização nos campeonatos amadores de muay thai e MMA (Mixed Martial Arts) dá sentido ao termo "vale-tudo". Por mais de três meses, ZH mergulhou nos subterrâneos das lutas e comprovou, com documentos e testemunhos, que a explosão de popularidade das artes marciais e a multiplicação de academias formaram um ambiente perigoso para fãs do esporte. Na última reportagem da série, vamos mostrar a história da jovem Maria Luiza Ramos, condenada a viver em estado vegetativo após uma série de irresponsabilidades durante um campeonato de muay thai.
A vendedora Vera Lucia Mello Ramos, 58 anos, busca inspiração na própria filha para continuar alimentando a esperança de que a jovem sairá do estado vegetativo (foto abaixo), mesmo com o diagnóstico médico de que não há mais como reverter o quadro que a deixa inerte sobre a cama.
Em um campeonato amador de muay thai em 2011, na Sociedade Hebraica, em Porto Alegre, Maria Luiza Ramos, então com 19 anos, foi golpeada severamente quando competia contra a lutadora Kelly Duncke Ribeiro, faixa preta de taekwondo, e não recebeu o atendimento médico adequado para estancar a tempo uma lesão cerebral.
Crédito: Mateus Bruxel/Agência RBS
Em comum acordo, elas não usaram equipamento de proteção na cabeça, um dos itens obrigatórios em competições não profissionais. Além do desnível técnico entre as duas - Luiza tinha três meses de treinamento e nenhuma experiência dentro do ringue -, o juiz do confronto, o professor da academia Scorpion Muaythai Anderson "Medalha" Vianna não impediu o acordo de dispensar os capacetes e não encerrou o embate diante do flagrante desequilíbrio.
A Polícia Civil apontou que a equipe médica se negou a levar a jovem para o Hospital de Pronto Socorro (HPS) da Capital. O acúmulo de irresponsabilidades fez com que mais da metade do cérebro de Maria Luiza ficasse comprometida. E não faltaram avisos de que algo estava errado naquela noite de outubro.
- Os amigos falaram que ela pediu para interromper a luta, que estava assustada, mas não aconteceu nada. Logo depois, ela foi para o vestiário, reclamou de dores na cabeça e desmaiou. Quando os enfermeiros olharam os sinais vitais, disseram que era grave, que deveria ir urgente para o hospital, só que a equipe da Transul disse que era impossível levar - lamenta Vera Lucia.
Enfermeiro diz que foi impedido de sair com a jovem
O enfermeiro Anderson Farias confirma que a ambulância ficou parada e argumenta que foi obrigado pela organização do campeonato a não deixar o local.
- Eu só poderia deslocar avisando o responsável, mas daí tinha de parar o evento porque só havia uma ambulância. A gente recebe na hora (a ordem). Tu só podes sair se o responsável liberar - afirma Anderson, indiciado no episódio por omissão de socorro.
Na primeira reportagem da série Submundo das Lutas, ZH mostrou que a prática de impedir que as ambulâncias saiam dos campeonatos é comum nas lutas amadoras do Rio Grande do Sul (veja mais detalhes no vídeo abaixo).
As pancadas ocasionaram uma hemorragia no crânio de Luiza, e a demora no socorro agravou o ferimento. A garota foi carregada pelos amigos em um carro particular e chegou ao HPS com os rins em estado de falência, quase morta.
Foi necessário mantê-la internada por seis meses - dois na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Nesse intervalo, foi vítima de infecções hospitalares. Os médicos relataram que as partes cerebrais de fala, movimento e controle do tronco foram totalmente afetadas.
Diagnóstico afasta esperanças
Três anos após o campeonato, ela apresenta alguns reflexos e vive em uma cama, de fraldas, sem emitir qualquer sinal de comunicação. A mãe dela paga do próprio bolso uma fisioterapeuta, uma fonoaudióloga e um médico oftalmologista.
- Não há nenhuma perspectiva de futuro. Porém, eu tenho esperança. Ela é jovem, dedicada, acho que vai conseguir. Ela fazia tudo 100%, se doava. Eu acredito - diz Vera Lucia, que contou que a filha começou a lutar para manter o condicionamento físico e se defender.
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Do encanto à violência
Em poucas semanas de treinos, Maria Luiza passou do boxe para o muay thai, esporte pelo qual se "encantou" e queria fazer carreira. É justamente nesse momento, conforme o presidente da Federação Gaúcha de Artes Marciais Mistas (FGAMM), Gustavo Finck, que começam as armadilhas que podem levar a sequelas irreversíveis.
Como a lei não regula a organização de campeonatos amadores, os responsáveis promovem "rinhas" e se preocupam basicamente com o dinheiro arrecadado das inscrições e do público e em demonstrar a superioridade das equipes para atrair futuros atletas.
- O muay thai é muito agressivo, e o que temos hoje é business. Não há zelo com as pessoas. Nem se pedem exames médicos para começar a treinar. Sem esses cuidados e sem legislação, o risco de muitas coisas graves acontecerem é grande - diz Finck.
Mãe aguarda indenização para adaptar a casa
A única coisa que a vendedora Vera Lucia Ramos espera hoje é que a Transul (empresa de ambulâncias) pague toda a assistência médica necessária e que a família receba uma indenização de R$ 1 milhão para fazer obras como um banheiro adaptado na casa simples em que vive em Canoas, na Região Metropolitana.
Ela teve de derrubar as paredes do quarto da filha e conseguiu comprar uma cama hospitalar, o que julga pouco pela complexidade do tratamento. Para amenizar o sofrimento, espalhou fotos de Luiza pela residência e busca apoio na fé e em doações de amigos.
Ela não pensava em ingressar com um processo, mas foi convencida a buscar na Justiça a reparação. Oito pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil em agosto de 2014 por tentativa de homicídio simples e omissão de socorro. Em setembro, o Ministério Público (MP) pediu à polícia que a investigação sobre a luta fosse complementada com novos depoimentos, e em outubro a promotora Lúcia Helena Callegari solicitou uma perícia com laudo oficial do IGP sobre as condições de saúde de Maria Luiza.
Ela ainda não confirmou se os indiciados serão denunciados. Enquanto isso, alguns deles, como Anderson Medalha, Sérgio da Rosa e Francisco Valmini Trois, o Kiko (treinador dela), seguem ministrando aulas em academias e organizando campeonatos.
- Quem é que lida com essas sequelas? Quem ficou com o compromisso de cuidar, dar o melhor? Os envolvidos nem ligaram para saber o que houve. Faz três anos que não consigo trabalhar e que a nossa vida virou de pernas para o ar. Nós tínhamos uma vida, éramos uma família. Agora, para eu vender algo, dependo de alguém com boa vontade para cuidar dela para eu poder sair. Isso é justo? - questiona Vera Lucia.
O que dizem os citados na reportagem
Mirele Alves Braz, advogada da Transul, empresa de ambulâncias
Eu vi os exames da Maria Luiza, ela sofreu múltiplas fraturas e tudo indica que ficaria nesse estado (vegetativo) de qualquer forma. O resultado, a priori, seria o mesmo, mas não podemos ter 100% de certeza. Ela encerrou a luta com um mal-estar não identificado, e o enfermeiro da Transul iniciou o atendimento. Ele estava tirando as informações e quando foi levá-la (ao hospital), foi agredido por várias pessoas de academias, que chutaram as cadeiras e não deixaram ele sair. Havia uma combinação prévia de várias academias para que não interrompesse a luta. Houve, então, um tumulto, e disseram que levariam ela de maneira particular. Nesse tipo de contratação, em geral, já pedem que a ambulância não saia do local, e pedem o veículo mais simples para pagar mais barato. É uma soma de fatores que torna o trabalho um trabalho de risco para todos. O enfermeiro é um profissional autônomo, e a Transul trabalha por evento ou contrato de longo prazo. Depois desse campeonato, não se envolveu mais em contratos de lutas.
Sérgio Rosa, um dos organizadores do campeonato em que Maria Luiza competiu
Eles (socorristas) se negaram a retirar a menina de lá. Ela terminou a luta, saiu do ringue caminhando e conversando, sentou na recepção. Depois teve uma correria, a guria passou mal, e eles (socorristas) não quiseram se deslocar para levar a menina. Não teve isso (de que os socorristas foram obrigados a não sair da Hebraica). Eu disse na polícia que, se não precisasse de uma ambulância, eu colocaria um carrinho de mão e uma bicicleta. O serviço deles é a da seguinte forma: se alguém passar mal na plateia, eles são obrigados a transportar, não só os atletas.
Anderson Vianna, o Anderson Medalha, árbitro da luta
ZH não conseguiu contato com Anderson Vianna para que ele falasse de seu indiciamento.
Francisco Trois, treinador da menina
ZH não conseguiu contato com Francisco Trois.