porto alegre analógica

Existe uma Porto Alegre resistente aos confortos do mundo digital. Trata-se de um lugar, ou melhor, de lugares que parecem perdidos no tempo, se comparado ao que ocorre ao seu redor – onde a vida segue o ritmo frenético da contemporaneidade. Conheça locais e personagens de uma cidade em que o tempo parou

Ezequiel, no paraíso perdido dos relógios antigos

Na esquina da Avenida Farrapos com a Rua Pelotas, fica uma loja com o sugestivo nome de Atelier do Tempo. Lá, o silêncio é interrompido constantemente por sons como tique-taque, cuco-cuco, ding-dong e bléin-bléin. Trata-se do paraíso perdido dos relógios antigos.

– Percebi que gostava de relógios quando estava com 13 anos. Troquei com um colega uma coleção de latinhas de cerveja que eu tinha por um despertador dourado – conta o relojoeiro Ezequiel de Andrade Neves, 41 anos, proprietário da loja de 300 metros quadrados.

Mas nem tudo saiu conforme o esperado. O despertador, estragado, precisava de reparos. Ezequiel então pediu para o pai conversar com um relojoeiro de São Marcos, na Serra, onde vivia com a família, para ensiná-lo a consertar relógios.

O profissional indicou ao adolescente um curso por correspondência de relojoaria. E assim teve início a história profissional de Ezequiel.

No Atelier do Tempo, que existe desde 2015 no bairro Floresta, mais de 300 relógios estão pendurados nas paredes, empilhados em prateleiras à espera do conserto, da busca pelo dono ou simplesmente expostos. Muitos vieram da França, da Alemanha ou de outros países.

Percebe-se que os relógios são, de fato, bem antigos. Mas também há os mais contemporâneos, inclusive os de pulso e de bolso sendo polidos, consertados e restaurados no local. E há os preferidos.

– Tenho um Seiko Crono Bull Head, que ganhei do senhor que me ensinou a consertar relógio de parede. Este eu não vendo de jeito nenhum – garante.

Ezequiel diz que a primeira frase que ouviu ao começar a trabalhar com o conserto de relógios foi que a atividade estava com os dias contados. O mais surpreendente é que a opinião vinha de outros profissionais do meio.

– Ouvi isso de vários relojoeiros antigos, deprimidos, que estavam fechando as portas – lembra, situando o momento em 1993.

Porém, o cenário atual se mostra completamente diferente. Há 28 anos na atividade, Ezequiel percebe uma tendência permanente de crescimento no ramo.

– Faltam profissionais. Não há mais relojoeiros e não há mais escolas de relojoaria no Brasil. O jovem, hoje em dia, está muito ligado à tecnologia – observa.

O homem que recupera os relógios reflete sobre a possibilidade de o equipamento analógico ser superado em definitivo pelo digital, que está nas telas dos smartphones.

– O relógio só não acabou porque existe uma ligação afetiva entre a pessoa, o objeto pessoal dela de medir o tempo, que é o relógio, e o tempo que passa e é contado por ele. Essa ligação fez com que (o relógio) não desaparecesse. E não vai desaparecer.

Ele vai adiante na reflexão:

– A impressão que tenho é de que as coisas são meio cíclicas. Em certo momento, as pessoas não gostam de alguma coisa por força do mercado e do marketing, mas parece que, de tempos em tempos, essas coisas ressurgem.

O perfil dos clientes é bem diversificado, variando de jovens a idosos. Inclusive abrange pessoas que ganham dos avós ou dos pais um relógio e o usam para decorar a casa. Cerca de 15 relógios de parede são consertados por mês no Atelier do Tempo, enquanto os de pulso chegam a 30.

– Temos uma filosofia que não está escrita em lugar nenhum e é a seguinte: "Perco o dinheiro, mas o cliente não fala mal de mim".

Além de Ezequiel, a esposa Rose Pretto Neves, 41 anos, e o filho Cristian de Andrade Neves, 25, trabalham na relojoaria. E há ainda Aline Nayara Pretto e Luiz Carlos Mazzanti, o Mestre Luizinho, 40 anos de experiência na bagagem, para auxiliar nas atividades. Sem contar a cadelinha Lupita, mascote e segurança da loja.

Na rotina diária, Ezequiel conserta carrilhões e relógios mais complexos de parede, enquanto o filho recupera os de fabricação alemã e os cucos. Mestre Luizinho lida com os de pulso. Ferramentas, tornos e peças diferentes compartilham o lugar em harmonia.

– Quem restaura um relógio desses não é para ver a hora. É para conservar – diz, apontando para um que acabara de badalar.

Ezequiel define assim o objeto de seu trabalho:

– O relógio é uma máquina que mede, guarda e carrega o tempo. O relógio não funciona sem paixão.

A esposa completa o pensamento do marido:

– O relógio é atemporal.

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