Marcus, um resistente entre 100 mil vinis
Serpenteando a curva de saída do Túnel da Conceição, no sentido bairro-Centro, a primeira impressão que se tem ao descer a rua de mesmo nome é de se enxergar à direita uma trincheira de livros e alguns badulaques em um pequeno ponto comercial. Na fachada com tinta descascada pelo tempo, o comerciante Marcus Valdes Bottega, 62, ganha a vida há 24 anos.
– Não é algo rotineiro, sempre tem novidade – comenta o dono do Brick Conceição, localizado quase na esquina com a Avenida Alberto Bins e vizinho do Vitraux Club.
Discos de vinil se multiplicam pelas estantes, mas ainda há CDs, filmes em DVD, livros e aparelhos de som antigos. Tudo isso divide o espaço pouco iluminado de 120 metros quadrados com carrinhos em miniatura e até chaveirinhos.
Lugar acanhado, o Brick Conceição é um dos bastiões da resistência do mundo analógico na cidade.
– Vou ter que ficar aqui o resto da vida, porque é minha profissão e gosto do que faço – diz Marcus.
Os passos apressados de pessoas em direção à Santa Casa de Misericórdia ou em deslocamento para as paradas de ônibus da região diminuem de velocidade quando passam defronte ao local. Segundo o proprietário, a procura dos clientes é, em sua maioria, por discos de rock internacional e bossa nova. E a faixa etária interessada no que existe ali fica acima dos 30 anos. Em seguida, ele se corrige:
– Na verdade, a faixa etária é bem variada. E 90% do público já me conhece.
Entre os objetos mais procurados estão exemplares bastante conhecidos do universo analógico.
– O vinil e o CD vendem parelho, não que seja uma procura muito grande. Mas as pessoas querem coisas raras – comenta.
Na tarde em que GZH esteve no local, havia um DJ garimpando vinis, um homem à procura de um antigo filme adulto (há uma seção específica para isso situada nos fundos da loja) e outro oferecendo aos proprietários uma medalha para venda. Indagado se o mundo digital vai engolir esses produtos vendidos atualmente como raridades, o proprietário hesita um instante antes de responder.
– Vai cair muito a procura, porque hoje é tudo virtual. Só que o colecionador e o saudosista querem sentir o produto na mão.
Natural de Ijuí, no noroeste gaúcho, o comerciante já teve outros pontos na Capital antes de se estabelecer no atual endereço, onde hoje trabalha junto ao filho Rodrigo, 34 anos, e à sócia Angélica Weber, 38. Sempre gostou de ser comerciante, ofício que aprendeu vendo o pai vendendo adubos em sua cidade natal.
Como os produtos estão se tornando raros e até difíceis de se encontrar, ele diz que paga bem mais do que antigamente para obter um artigo e poder revendê-lo com algum lucro. Ou seja, o que sobreviveu aos áureos tempos analógicos está mais caro.
Passaram por suas mãos peças como aparelhos valvulados, o primeiro disco de Roberto Carlos, Louco por Você (1961), e os dois LPs da série Tim Maia Racional (1975).
– Mas vendo coisas que nunca imaginei que venderia – discorre.
Há mais de duas décadas na atividade, já conheceu personagens bastante curiosos:
– Tem clientes que vêm dias, meses, e só depois voltam e compram alguma coisa. E tem o saudosista que vem ver o toca-discos ou o videocassete e traz o filho pequeno para mostrar.
Também já testemunhou gente “muito bem vestida” entrando na loja e furtando objetos como agulhas de toca-discos. E gente famosa em busca de alguma raridade.
– Já veio o Evandro Mesquita, que comprou alguns vinis da própria Blitz e do grupo A Cor do Som. Passou por aqui o Ed Motta, a Leci Brandão. Também o Borghettinho, para quem dei de presente uma gaita velha – recorda.
Sobre a gaita presenteada, relembra de outra historinha:
– No dia em que dei a gaita para ele, apareceu aqui um sujeito perguntando por ela. Tinha visto dias antes e decidiu voltar para comprar – lamenta, reconhecendo que perdeu dinheiro nesse caso.
Outro dia, por engano, deixou um cliente fechado dentro da loja. A inusitada situação ocorreu em torno das 19h de um dia chuvoso. Para piorar, era um daqueles invernos gelados.
– Sempre vasculhava todos os cantos da loja antes de fechar. Naquele dia eu estava cansado e achei que não tinha mais ninguém. Tranquei a porta e fui embora – narra.
Em torno das 23h, já em casa, recebeu um telefonema da Brigada Militar dizendo que havia uma pessoa presa dentro do estabelecimento esmurrando a porta.
– Quando abrimos, era um cliente que cheguei a ver na loja durante a tarde. O problema é que ele tinha claustrofobia – revela, acrescentando que, apesar da experiência inesperada, até hoje o visitante frequenta o lugar.
A loja tem cerca de 100 mil vinis à venda, calcula o proprietário. Perguntado sobre quanto fatura em vendas por mês, ele despista:
– Não tem lógica, mas dá para viver bem.
Aparentemente dá mesmo, tanto é que ele planeja abrir um espaço semelhante na Avenida Alberto Bins a partir de 2024.