Peter, um guardião do saber impresso
O mundo digital oferece uma série de facilidades para quem lê. Mas o manuseio do objeto de leitura traz uma experiência carregada de estímulos. Ter um livro material em mãos é algo ímpar.
Quem sabe muito bem essa máxima é o economista Peter Dullius, 72 anos, proprietário do Beco dos Livros. O sebo tem três sedes em Porto Alegre, uma delas localizada na Rua dos Andradas, quase defronte à Casa de Cultura Mario Quintana, no Centro Histórico.
– Sou um dinossauro – diz Peter, em meio às pilhas de livros que parecem se multiplicar até onde a vista quase não alcança.
O Beco dos Livros da Andradas é um convite a descobertas. Há livros, além de revistas e alguns discos de vinil, para todos os gostos, de variados tipos, épocas e estados de conservação.
A experiência ao caminhar pelos corredores é sensorial. Até o cheiro é peculiar, como se o próprio ar carregasse o peso da literatura contida e distribuída pelas prateleiras.
O livreiro, que está nessa atividade desde 1992, conta que trabalhava em banco quando o filho completou seis anos e foi para a escola. Sua esposa decidiu que queria ter uma atividade para trabalhar fora de casa. O casal viu em um anúncio no jornal que uma livraria estava à venda na Rua General Vitorino e decidiu comprá-la. Em dois anos, Peter estava na Riachuelo, outrora a "rua dos sebos" na cidade.
Houve diversas outras trocas de endereço (ele chegou a ter sete lojas) até chegar às três lojas atuais – uma delas na Riachuelo, outra pertinho dali, na General Câmara. Além dele, o filho Guilherme Dullius, 44, e quatro funcionários se dividem entre as unidades.
– Uma livraria nova possui livros dos últimos seis a 12 meses. Nos sebos, você encontra os livros dos últimos 200 anos – reflete Peter.
A relação dele com os livros teve início de forma discreta ainda na infância em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. Lá, havia poucos livros, porque o menino vivia na roça. Os pais eram agricultores e decidiram colocá-lo em um colégio interno em Estrela, na mesma região. Foi quando o ritmo e a variedade de leitura cresceram vertiginosamente.
– Me criei em internato, e lá tinha biblioteca. Li toda ela – orgulha-se.
Segundo ele, que vive em Porto Alegre desde 1969, o livro pode ser levado debaixo do braço para qualquer lugar.
– Já o celular cansa. É muito pequeno – compara.
Viver cercado por livros e leitores gerou histórias curiosas nessas mais de três décadas, além de personagens um bocado peculiares. Uma delas:
– Havia uma senhora que vinha todas tardes, ia para a seção de culinária, puxava o caderno e copiava receitas. Isso aconteceu por uns dois anos. Certo dia, ela confessou que não sabia cozinhar. Por que copiava? Era para passar o tempo – explica, detalhando que se tratava de uma aposentada solitária que vivia em um hotel.
E as relíquias que já passaram pelas suas mãos?
– Tenho a primeira edição de Os Sermões, do Padre Antônio Vieira, de 1670-1720, que guardei e nunca vendi. Ficou porque é uma coisa que chama atenção e está há tantos anos rolando por aí. Já tive nas mãos 20 milhões de exemplares – responde, citando que, entre seus autores preferidos estão Archibald Joseph Cronin e William Somerset Maugham, além de, entre os gaúchos, Erico Verissimo.
Sobre as vendas atuais, estima a comercialização de até 3 mil livros por mês na soma de todas lojas.
– Não é mais como era antigamente – analisa.
– Temos uma retração, mas isso não se deve tanto à leitura eletrônica, e sim ao fato de os dias estarem mais corridos. Mas o livro impresso vai continuar. Daqui a cem ou 200 anos seguirá havendo essa discussão. O livro impresso é mais confiável: na mídia eletrônica sempre se pode achar que alguém mexeu no texto.
E tem o fato de que uma livraria é por si só um atrativo.
– As pessoas acham que um livro é como pedir um lanche para mandar entregar em casa. Como se acostumaram a baixar um livro da internet por R$ 10, querem saber se posso entregar em Canoas. Isso não existe. O que existe é a livraria. Você tem que se deslocar para encontrar o livro. Às vezes, você tropeça no livro. E 90% das pessoas não vão com ideia fixa de compra. Elas querem ver o que tem.