Redação Donna
Moda, criatividade e design. Para Jum Nakao, uma referência mundial no estilismo moderno, nada melhor do que falar de seus temas preferidos. Nakao criou uma coleção de papel, apresentada na São Paulo Fashion Week, considerado o desfile da década de moda no Brasil, e um dos mais importantes desfiles do século pelo Museu da Moda de Paris. Ele visita Joinville (SC) esta semana para a palestra Moda e Arquitetura – Um Plano de Viagem ao Processo Criativo. Nesta entrevista, fala sobre estilo, tendências, mercado, consumo, criatividade, uso de tecnologia na moda e trabalho autoral.
Como você entrou para o mundo da moda?
Jum Nakao – Eu sempre tive interesse em decodificar, alterar, desconstruir e reconstruir. Desde pequeno eu me interessava em abrir equipamentos para poder remontar. Os quebra-cabeças que eu tinha montado eu tentava reconstruir de maneira diferente. Remontando criava meus próprios brinquedos. Na adolescência, acreditava que o suporte do meu trabalho seriam as mídias digitais e eletrônicas e tudo que girasse em torno de interfaces de percepção para ampliar e criar novas possibilidades por meio da tecnologia. Infelizmente os estudos acadêmicos eram distantes desta abordagem e fui buscar novas mídias, outros caminhos que não fossem a eletrônica. Descobri, então, uma interface mais real e próxima, a roupa, e a moda como mediadora da relação entre as pessoas e o entorno. Comecei minha formação em moda numa época em que não havia faculdade de moda.
Então que curso você fez?
Nakao – Os cursos ligados à moda eram apenas corte, costura e modelagem. Fiz estes cursos, mas achei superficial. Descobri a Coordenação Industrial Têxtil (CIT), uma instituição que organizava cursos com professores e profissionais do Brasil e do exterior, destinados a capacitar os profissionais das empresas associadas. Por telefone, obtive informações e fui convidado a assistir algumas aulas. A pessoa com quem eu falei ao telefone era o diretor do CIT, Carlos Mauro Fonseca Rosas. Durante uma semana assisti todos os cursos e, ao final, com as disciplinas, tinha uma convicção maior de minha escolha. Mas como eu não era funcionário de nenhuma empresa associada ao CIT, não poderia participar dos cursos. Escrevi uma carta e consegui um estágio e uma bolsa na Rhodia, empresa associada ao CIT. Depois trabalhei com um alfaiate para compreender a relação da geometria dos traçados com o corpo humano. Na sequência, com um joalheiro para estudar os acessórios e complementos da roupa. Ainda assim sentia a necessidade de um fundamento acadêmico. Fui estudar artes plásticas na FAAP.
Qual a sua definição de moda?
Nakao – O lugar que você habita tem relação direta com seus hábitos, modos, moda. Hábito também significa roupa. A roupa seria a interface entre seu habitat interior, seus hábitos e a sua relação com o entorno. Moda é mais do que a roupa: permeia os lugares que você frequenta, livros que você lê, bandas que você ouve, a forma como você se expressa, a forma como você recebe as pessoas, a gastronomia. Tudo espelha a cultura ao seu redor.
Seu desfile na SPFW/Verão 2005, em que as modelos rasgaram as roupas de papel no final, ganhou fama e continua sendo comentado até hoje. Você imaginava que haveria tanta repercussão quando criou a coleção?
Nakao – Para mim extrapolou tudo o que eu imaginava. Não esperava que fosse reconhecido como o desfile da década pelo SPFW, nem como um dos maiores desfiles do século pelo Museu de Moda de Paris. Este trabalho já percorreu museus como o de Arte Contemporânea do Japão, o The New Dowse (Nova Zelândia), foi exposto na Forteza del Basso em Firenze, no MoMu (Bélgica), no Atopos (Grécia) e foi publicado em dezenas de livros sobre arte, moda e design. O desfile aconteceu numa época em que eu questionava – e continuo questionando – as referências, o conteúdo da produção "cultural" e os fenômenos em nosso entorno. Somos expostos a uma quantidade de informação tão grande que as pessoas não mais digerem nem decodificam, apenas engolem. Era importante eu realizar um trabalho questionando o conteúdo, o conceito por detrás da forma. Materializar um trabalho que, mesmo destruído, rasgado, permanecesse vivo na memória das pessoas.
Então o objetivo era questionar?
Nakao – Trata-se de um questionamento sobre a materialidade e sobre o real valor, um trabalho que permite vislumbrar que mais importante do que as tendências e desenhos vazios de significados, o que importa é o diálogo que a obra estabelece, que mesmo o efêmero pode ser permeado de permanência e que existem caminhos, valores e ética necessários em qualquer área. Não era um desfile sobre moda, o nosso objetivo era apresentar um vazio repleto de possibilidades e transformar o nada em algo visível, daí o nome a "Costura do Invisível".
A produção de moda hoje no Brasil pode ser considerada criativa ou ainda somos reféns das tendências internacionais?
Nakao – Os estilistas têm evoluído muito, porém o mercado consumidor não. Como a moda enquanto negócio tem que se modular pelo mercado, lamentavelmente estamos parados. A moda no Brasil ainda é incipiente, portanto é compreensível que ainda não haja uma identificação do consumidor. Os novos estilistas brasileiros têm feito sua parte. Existem muitos talentos (prefiro não citar por delicadeza). A cara da moda dependerá da maturidade deste consumidor em se reconhecer no espelho como brasileiro e assumir os estilistas locais como sua imagem. É um processo que atualmente se encontra em fase de ajuste e de aproximação, imagem e identificação. Espero testemunhar em vida estas mudanças, pois pretendo voltar a desfilar. Sinto uma enorme saudade. Mas ainda é cedo. Espero que com todos estes trabalhos possa colaborar para que as mudanças/metamorfoses aconteçam e, assim, possa voltar a utilizar a moda como a minha metáfora.
Você se considera um estilista ou um designer? Ou as duas coisas? Uma formação complementa o outra? Qual a sua ligação com cada área?
Nakao – Não me atenho ao suporte – roupa ou mobiliário, instalação ou performance –, mas ao observador e as suas possíveis relações e percepções através destes meios. Como as percepções são múltiplas, um meio complementa o outro. Vestir uma casa é muito próximo de vestir uma pessoa, pois o que vestimos na realidade é a relação do usuário com o entorno. Minha ligação é como estabelecer novas relações e percepções deste entorno. Não estou restrito aos meios ou áreas.
Existe espaço para um trabalho autoral de moda como o seu no Brasil?
Nakao – Antes da Zoomp e durante minha permanência como diretor criativo da marca, já conduzia em paralelo alguns projetos autorais. Após 20 anos desta vida dupla, decidi, em 2002, me dar a oportunidade de trilhar apenas um caminho, experimentar as vantagens e o aprendizado propiciados pelo empreendedorismo. Os universos criativos dentro de uma empresa e em um universo autoral são containeres distintos, mas de igual tamanho e importância. Numa empresa aplicamos a criatividade dentro das potencialidades produtivas e de consumo do mercado. No universo autoral experimentamos as possibilidades pessoais desconhecidas e nos realizamos como indivíduo. São universos que se tangenciam, alimentam-se de suas vivências, mas são mundos à parte. Quando se tem uma marca própria estes containeres se aproximam numa fusão nuclear complicada. Aprendi muito e em 2004 decidi romper, rasgar. "A Costura do Invisível" é um rasgo com o formato, não com a moda. Após este desfile, abdiquei de minha marca própria – pelo menos por um tempo – para me dedicar à formação de uma consciência sobre moda e suas possibilidades. Estou no meio do processo e as coisas ainda não mudaram. Acredito ser mais importante, neste momento, fomentar as mudanças do que continuar fazendo o mesmo, dia após dia.
A que projetos você se dedica hoje?
Nakao – O mundo não precisa de mais roupas: precisa de pessoas melhores. Mas como transformar as pessoas? Acredito que o caminho seja a educação e a cultura. Em moda somos todos muito iletrados, alfabetizados apenas no sentido de sermos consumidores, mas totalmente sem capacidade de leitura e interpretação. Existe uma grande diferença entre alfabetizar e educar. Tenho me dedicado à esta educação, pois de que adianta poesia se a escrita não é compreendida? Continuo participando ativamente da moda como professor, palestrante, ministrando workshops, prestando consultoria a empresas de diversos setores e a convites de museus, fundações e instituições realizando exposições no Brasil e, principalmente, no Exterior.
Os brasileiros têm estilo na hora de vestir ou apenas consomem o que o mercado oferece?
Nakao – O brasileiro segue tendências pasteurizadas, crescemos importando valores. As vitrines das lojas de roupa nos shoppings são todas idênticas. Poderia até ser uma coisa só, sem a fachada da marca. O povão conhece a Gisele Bündchen e sabe o que é Dior, Gucci e Louis Vuitton. Agora tente perguntar para o mesmo povão para citar algum estilista brasileiro. Não vão saber. Tudo bem se a maioria da população os conhecesse e não tivesse poder aquisitivo para comprá-los, mas ao menos teriam uma referência de moda brasileira e aspirações, para sonhar em tê-la. Demos alguns passos, mas falta muito para dizer que construímos um caminho. E o importante é continuar caminhando.
Qual a importância da tecnologia no seu trabalho?
Nakao – A aproximação entre as áreas de moda e design, tecnologia e arte, é necessária. E como escreveu Edgar Morin, a segmentação e compartimentação dos saberes se demonstrou obsoleta e sem capacidade de respostas para a complexidade que a vivência humana e sobrevivência do planeta necessitam. Definir, rotular, estabelecer limites me soa generalista demais. Acredito que a experiência artística é a relação que transcende a obra e observador. É o rompimento de barreiras e de pressupostos, onde se joga um jogo sem regras, limites, convenções e, então, a transformação acontece. A obra em si é a materialização de conceitos, interface entre o inefável e o real. Ela é palpável, e contém um sentido. Mais do que palavras soltas, frases sem sentido é necessário soprar um pensamento. A integração entre o espectador e a obra é fundamental. Sem esta integração a obra não existe. Por isto faço "uso preciso do vago" como já dizia Ítalo Calvino, onde a individualidade encontra seu espaço. Prefiro esta relação com o objeto inacabado, com o saber.
Qual a receita para mexer com os sentidos das pessoas? Porque o seu trabalho sempre mexe com os sentidos.
Nakao – Mexer com os sentidos, despertar, estimular reflexão são necessários para que uma obra exista. Sem esta reação a obra não acontece. Os trabalhos interagem com o indivíduo, com o seu olhar, com o seu repertório, daí a palavra refletir. A obra é a relação com o espectador. A forma como criamos esta relação não é estática, pois acreditamos que nada o é. Por isso caminhamos sempre em busca de novas formas. Podemos ser sutis nos nossos atos, porém a dimensão de sua significância é dada pelo receptor, que atribui um sentido pessoal e único para o estímulo que propiciamos aos seus sentidos. Não somos mais os responsáveis por surpreendê-los e sim a sua própria consciência.
O que você pode antecipar sobre a sua palestra?
Nakao – Proponho um plano de viagem aos interessados em pensar sobre o processo criativo e transformações para o novo milênio. Nesta palestra, inquietações próprias dos que trabalham com estes processos são trazidas à tona através de imagens e sons. Reunindo imagens do processo de desenvolvimento da coleção de papel, apresentada em julho de 2004 no São Paulo Fashion Week e pensamentos sobre a criação artística, a palestra conduz o espectador ao mergulho para desvendar o que não se vê sem o pensamento. Nestas profundezas o público se torna parte do processo de criação do desfile, do trabalho de todas as equipes, do caminho percorrido a partir da primeira reunião até o desfile com delicadas roupas de papel. O convite é tentador e o caminho pode ser muito surpreendente. Boa viagem!
Qual a relação da moda com a arquitetura, que é o tema da palestra?
Nakao – Os arquitetos em geral são curiosos e interessados por assuntos relacionados à estética, principalmente em moda, que se aproxima muito da arquitetura e vice-versa. O que vestimos é a relação do usuário com o entorno. Roupas e casa se tornam uma extensão de quem as habita. Moda, arquitetura, design, decoração podem e devem ser pensadas além produto. Fiquei muito feliz com esta iniciativa do ciclo de palestras Docol. Acredito muito no compartilhamento de saberes como meio de formar pessoas melhores e assim construir um mundo melhor. Acho de suma importância esta transversalidade, pois a segmentação empobrece e limita as potencialidades de linguagem.