Quatro anos atrás, quando Guto Oliveira, hoje com 40 anos, chegou em casa com o Urso (apelido do Toyota Bandeirantes 1993 que era o seu xodó desde a adolescência), as crianças não imaginavam que o monstro de lata roncando e cheirando a diesel no quintal se tornaria, muito em breve, seu novo lar.
– Isso aqui não é um carro – o pai disse à gurizada naquele dia. – É uma nova experiência para a nossa família.
Começaram com um destino de praia. Era a primeira grande expedição do Urso na companhia da família, composta por Guto, Jane Martins, atualmente com 41 anos, e os dois filhos, Caio e Sophia. Ele, com seis anos na época. Ela, com pouco mais de três. Juntos, botaram o Urso lento e preguiçoso na estrada e rodaram de Novo Hamburgo, cidade natal de Guto e residência da família, até Paraty, no Rio de Janeiro.
As crianças adoraram. Mais tarde, o pai prometeu, poderiam pensar em outra viagem, talvez até o Uruguai. E depois, quem sabe, para um lugar mais distante, mais desafiador.
– Depois, quando? – interpelou Jane. – Quando a gente for velhinho, não tiver mais energia, e as crianças não forem mais com a gente?
Quando a discussão terminou, eles já tinham se decidido. Dali a um ano, a família sairia para viajar o mundo com o Urso.
Durante todo ano de 2015, Guto Oliveira e Jane Martins equiparam o 4x4 com uma barraca de teto, sacos de dormir, chuveiro, uma geladeira de 40 litros e um fogão à gasolina. O plano era alcançar cinco continentes em cinco anos.
O Urso saiu de Novo Hamburgo e pipocou por São Lourenço do Sul, Pelotas e Chuí antes de deixar de vez as terras tupiniquins. O itinerário seguiria as ordens do clima: pretendiam chegar à Patagônia no verão, para evitar o frio extremo, e cruzar a América Central durante o inverno, para evitar o calor extremo.
Início pelo litoral uruguaio
No primeiro ano, percorreram todo o litoral uruguaio antes de chegar à Argentina. Uma vez lá, rumaram para o sul até Ushuaia, na Terra do Fogo. Do extremo gelado do continente, seguiram pela costa do Pacífico em direção ao norte da América, atravessando Cordilheira dos Andes, Deserto do Atacama, Caribe, Estados Unidos e parando só depois de cruzarem o Círculo Polar Ártico. Depois, foram para a Flórida, nos Estados Unidos.
Guto e Jane eram sócios de um escritório de representação internacional em Novo Hamburgo, mas também angariaram patrocínios para a viagem com marcas de equipamentos de aventura.
A regra número 1 deles era não pagar para dormir. Estadia, alimentação e combustível eram as despesas mais altas – os gastos mensais ficavam entre
US$ 1,3 mil e US$ 1,8 mil, sem contar passagens aéreas dos voos entre um continente e outro. Por isso, se podiam eliminar o gasto com acomodação, assim o faziam. Sempre que possível, viajavam pelo interior, por parques nacionais, longe das cidades.
Montavam acampamento em lugares mais escondidos, como estradinhas ou margens de rios. Na falta de lugar melhor, ficavam em estacionamentos pagos, pátios de casa ou achavam um cantinho em um posto de gasolina 24 horas. Mas a praia deles mesmo era acampamento selvagem, com direito a fogueira e barraca no chão. Era isso ou acampar no “segundo andar” do Urso, a barraca de teto, estrutura com escadas fixa a uma plataforma em cima do carro.
– Em três anos, só dormimos uma vez no carro, e foi ruim. Estava chovendo muito e a gente não quis montar acampamento – contou Guto.
Do Chile para cima, a família também negociou hospedagem em hotéis, pagando as diárias com trabalhos de fotografia de Guto. Nesses termos, ele fechou acordo com mais de 40 hotéis – de “meia estrela” a cinco estrelas.
Novo aprendizado para as crianças
Caio estava no segundo ano da escola quando a viagem começou. Sophia, no jardim de infância. Durante a expedição, que completou três anos em setembro, Caio e Sophia viram coisas que a maioria das crianças da idade deles só podia conhecer dos livros e da tela do computador. Muitas vezes, Guto e Jane precisaram lembrá-los de que não estavam de férias.
– A gente queria que o mundo fosse a sala de aula dos nossos filhos – explica Guto.
A maior parte do aprendizado é prático. Caio e Sophia conheceram criaturas selvagens, algumas que ainda nem sabiam que existiam, e aprenderam dois idiomas, inglês e espanhol. Hoje, olham para o mapa-múndi e reconhecem a geografia dos lugares por onde passaram, o clima, as pessoas e o modo como elas vivem. Mesmo assim, não são dispensados das aulas. As lições ficaram por conta da mãe.
– Não sou professora, tive de aprender para ensinar. É bom acompanhar, saber o que eles estão aprendendo e o que não estão. Às vezes, eu me preocupo, penso que não é suficiente – conta Jane.
A frequência das aulas depende do ritmo da viagem. Não é tão regular como lecionar em casa para os filhos, porque às vezes a família passa muito tempo na estrada. O rendimento vai muito da disposição de cada um. Para Guto, o mais importante é o vínculo que Jane e ele estão criando com os filhos. Antes da viagem, trabalhavam tanto que mal tinham tempo para as crianças.
– Não tem o que pague acompanhar diariamente o crescimento deles. Pais ausentes na infância dos filhos tentam se reaproximar só lá na adolescência. A Jane e eu estamos desenvolvendo essa ligação, muito forte, com eles agora – comenta Guto.
Em 2016, a família chegou ao Equador, logo depois do terremoto que destruiu a região de Manabi em abril daquele ano. Guto e Jane foram voluntários no auxílio aos atingidos, juntando-se a um coletivo para ajudar na reestruturação econômica dos pescadores e produtores de café da região.
Na América do Norte, Caio descobriu que adora orcas. Ele as viu pela primeira vez na Baja Califórnia, México. Foi lá que também mergulhou com um tubarão-baleia. Já Sophia, com seus oito anos, tinha uma quedinha pelas noites de Las Vegas, com suas luzes e seus chafarizes.
Problemas de saúde desaceleraram viagem
Depois de desbravar a América, a família voou para a Europa. O Urso foi de navio, separado dos companheiros de jornada, mas até já estava acostumado com o oceano – viajara sozinho em outra embarcação anteriormente, quando a turma precisou atravessar o Mar do Caribe em um veleiro.
Quando se reencontraram, a família e o Urso pegaram a estrada de novo. Do continente europeu, rumaram à África, onde viram de perto a cultura do Oriente Médio e enfrentaram o sol inclemente do Saara. Foi na imensidão do deserto que encontraram o maior desafio da jornada, que os obrigaria a interromper a aventura.
Guto era o mais corpulento, e as crianças sempre tiveram energia de sobra. Foi sobre os ombros de Jane que caíram as maiores agruras da expedição. Já no Alasca, ela teve uma crise de anemia e começou a sentir dificuldade para comer. Cogitaram uma possível gastrite ou restrição alimentar, como intolerância à lactose, mas os exames foram inconclusivos.
– Alguns dizem que pode ser psicológico, por causa do cansaço. A viagem é bastante extrema, exige muito do corpo – contou Jane.
As coisas pioraram na África.
A família deixou o Marrocos, no noroeste do continente, e partiu em direção a Atar, capital da Mauritânia. Para chegar lá, precisaram cruzar 800 quilômetros pelo deserto do Saara, sob um calor de 50°C. Foi nesse cruzamento que Jane teve a maior crise da jornada, potencializada pelo sol escaldante, pelas colunas de areia e por várias horas sem comer.
Os rumos sofreram um desvio, que os conduziu a vários hospitais pelo continente africano.
– No deserto, não tem como preparar comida. Não dá pra abrir o carro e cozinhar com o calor e as tempestades de areia. Mas esta é uma viagem ao mundo. Vamos viver os melhores e os piores momentos da vida – explicou Jane.
Na Mauritânia e no Senegal, a família passou por vários hospitais – onde encontraram gatos, moscas e até cabritos, menos um diagnóstico. A passagem pela África foi tão difícil que, quando ouve falar em voltar para a Mauritânia, Caio reage na mesma hora: “Nunca!”.
Ele é categórico a respeito. A única coisa que aprovou por lá foi o salgadinho de vinagre.
– Muito sujo, muito desarrumado, não cuidam dos lugares. E as pessoas comem com as mãos, que nem a Sophie – explica Caio.
O plano era seguir da Mauritânia até a África do Sul. Mas não puderam manter o itinerário com a saúde de Jane debilitada como estava. Assim, voaram para a Itália, onde tinham parentes, para que ela pudesse descansar e se alimentar melhor.
– Espero que não seja nada grave. Nós temos planos ainda – lamentou Jane, do sofá da casa do irmão, em Peschiera del Garda.
Estão há mais de mil dias fora de casa. Nesse meio tempo, visitaram 26 países. Nos próximos dois anos, pretendem alcançar a Ásia e a Oceania. Depois disso, Guto explica, ainda vão “desenhar o futuro”. Mas de uma coisa ele tem certeza:
– Não queremos voltar para o estilo de vida que tínhamos antes. A gente saiu daquilo porque não estava funcionando. Não é uma fuga, porque um projeto assim não pode ser uma fuga, tem que ser uma opção. Eu acho que existem mil maneiras de se viver.