É dito que, para entender o presente, é preciso olhar para o passado. Só que, no que diz respeito à proteção à vida da mulher, espiar o contexto de 30 anos atrás assusta. Para começar, não havia Lei Maria da Penha, que, desde 2006, protege contra a violência doméstica.
A Defensoria Pública do Estado recém-começava a atuar, o que dificultava o acesso das mais pobres à Justiça através de processos. As Delegacias da Mulher eram poucas – mesmo atualmente estima-se que 91,7% dos municípios brasileiros não tenham delegacias especializadas, conforme levantamento do IBGE.
E, mais assombroso ainda, os casos de violência sexual contra a mulher não eram considerados crime contra a pessoa, e sim crimes contra a honra, conforme a advogada Márcia Soares.
— A naturalização da violência era enorme. Quando uma mulher era violada sexualmente, de fato, quem estava sendo “atingido” era o seu marido, não ela. Tudo estava precisando mudar, havia um grande vácuo legal e faltavam serviços de atenção a elas. E aí, uma mulher em situação de violência fazia o quê? — questiona ela.
Foi diante desse vazio de estratégias que nasceu a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos. Soma-se a isso o fato de que o país passava por um processo de redemocratização, junto com a Constituição de 1988, cenário em que, segundo Márcia, havia um entendimento de que certas políticas já eram necessárias, mesmo que o Estado ainda não tivesse condições de implementá-las.
Naquele 1993, ela e a também advogada Denise Dora, fundadoras da ONG, levaram suas máquinas de escrever e seu telefone fixo para uma sala em frente à Praça da Alfândega, onde estão até hoje. Começaram os trabalhos na crença de que era preciso informar as mulheres acerca de seus direitos e estimular as instituições a se atualizarem.
— Foi preciso desconstruir anos de experiência e de afirmação legal. Afinal, quando o próprio judiciário diz que os homens matam em defesa da honra, desnaturalizar isso na cabeça das mulheres, na comunidade, no próprio Judiciário e na imprensa tornou-se crucial para nós. Começamos a dialogar com a Justiça fazendo seminários, publicações e também através dos processos, defendendo teses para provocar respostas. Usávamos, por exemplo, instrumentos internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher — relembra a profissional.
Partindo do princípio básico de que as pessoas não buscam direitos que não sabem que têm, a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos entendeu que também precisava contar para as mulheres, principalmente as periféricas, sobre como poderiam acessar a Justiça. A solução foi criar o Programa de Empoderamento Legal (PLP), em 1994, uma capacitação jurídico-feminista para as que atuam como líderes em suas comunidades.
Os primeiros cursos foram direcionados a moradoras da Restinga e da Zona Leste de Porto Alegre e, passadas três décadas, já são mais de 500 promotoras legais populares formadas no Estado. O programa ainda foi adaptado junto a organizações de 14 cidades do Rio Grande do Sul, além de mais 11 de outras regiões do Brasil.
Recentemente, se internacionalizou, ao ser implementado em Cabo Verde, em uma parceria com uma associação que combate a violência de gênero naquele país. Ações para informar adolescentes e trabalhadoras domésticas sobre seus direitos também estão em andamento, conforme a dirigente.
— Nas comunidades, é criado um Serviço de Informação a Mulheres, também chamado de SIM, onde as promotoras fazem atendimento semanal gratuito focado no enfrentamento da violência doméstica, sexual e racial. Elas fazem o acolhimento, informam, encaminham, se for preciso, à delegacia. Por um tempo, chegamos a acompanhá-las na audiência, quando ainda não havia a Defensoria — relembra a advogada Márcia Soares.
É inegável que o cenário mudou com o passar dos anos e a profissional ressalta a importância de conquistas no âmbito da Legislação, como instituir a Lei Maria da Penha e soterrar a ideia da legítima defesa da honra, e da formação de uma rede de serviços de assistência, composta por defensorias, delegacias da mulher e centros de referência. Mas também acredita que é preciso avançar. Os crescentes números de feminicídios não deixam pensar o contrário.
— A rede precisa ser ampliada e precisamos investir na prevenção da violência e do agravamento dela, o feminicídio. Isso porque a maioria dos serviços que temos é de acolhida a mulheres quando a violência já aconteceu — discorre a fundadora da Themis.
Ela pontua ainda a importância de um olhar atento sobre a desigualdade na base dos processos.
— Para interromper essa escalada, é necessário informação, saber como se posicionar quando uma mulher está em situação de violência, ter serviços especializados e combater o racismo institucional. Embora a maioria das mulheres que sofrem violência seja de negras, no Juizado da Violência Doméstica vemos que a imensa maioria das que recebem medida protetiva é branca. As mulheres pretas não são tratadas da mesma forma que as brancas nem na delegacia, nem na vara de Justiça. Se a gente não mexer nisso, não reduziremos os feminicídios — reflete Márcia.
Esta matéria faz parte do especial em comemoração aos 30 anos de Donna. Veja também:
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