O que se dizia da mulher que tinha câncer de mama há 30 anos era algo parecido com “Morte, morte, morte e mutilação!”, frase da mastologista Maira Caleffi que reúne as duas palavras que mais apareciam à época. E se, hoje em dia, a batalha contra o câncer de mama não é motivo de vergonha nem sinônimo de fim, é muito em função da força de vontade de lideranças femininas.
Uma das primeiras figuras públicas a tornar o assunto amplamente conhecido foi Betty Ford, ex-primeira-dama dos Estados Unidos diagnosticada nos anos 1970, que lutou abertamente contra a doença. Segundo a Casa Branca, Betty fez cirurgia radical e optou por trazer sua batalha a público para quebrar o estigma, inspirar mulheres a fazerem exames e incentivar pesquisas.
Foi cerca de 20 anos depois que resultados na ciência, impulsionados pelo levante dela, começaram a aparecer, ajudando a instaurar um novo panorama de sobrevivência à doença, relembra Maira, que chefia o Serviço de Mastologia do Hospital Moinhos de Vento, na Capital. Segundo a médica, estudos e experiências britânicos e norte-americanos estavam mostrando, pela primeira vez, que os índices de cura poderiam ser aumentados.
E foi justamente esse novo cenário que a inspirou a fundar, em 1993, o Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama), uma organização sem fins lucrativos da qual a mastologista é presidente de honra até hoje.
— Antes, era só mortalidade, cada vez mais, mas naquele ano a gente conseguiu ver a sobrevida aumentando. Estava voltando de 10 anos estudando no Exterior e me dei conta de que era possível essa evolução convocando a sociedade civil, como havia feito a primeira-dama dos EUA. Só que eu não era uma primeira-dama, era só uma médica começando o movimento de dizer “olha, temos essa informação científica de que, com diagnóstico precoce, fazendo mamografia em todas, a gente vai conseguir mudar o número de mulheres que morrem” — afirma Maira.
Como todos que chegam querendo revolucionar, a profissional encontrou resistência. Um dos principais desafios foi fazer a comunidade médica entender que era preciso abrir um caminho de conversa entre ela e seus pacientes, fazer um movimento social para conscientização sobre o câncer de mama e traduzir os termos médicos para uma linguagem mais acessível.
— Agora parece tudo fácil, com Outubro Rosa consolidado, mas demorou a vir esse entendimento de que nós, médicos, temos que ter um papel social. Eles me olhavam tipo: “Quem é essa cirurgiã, chegando com umas ideias de se comunicar, de fazer ONG, que p*rra é essa?” — relembra ela.
Influenciadoras
Apesar das barreiras, ao longo de três décadas, a conscientização sobre o câncer de mama avançou, sempre defendendo bandeiras como a da importância do diagnóstico precoce, a necessidade do conhecimento do próprio corpo, do autoexame, da mamografia de rotina e de visitas periódicas ao médico. Evoluções na medicina que possibilitaram cirurgias que preservam mais a mama também ajudaram no incentivo ao tratamento e na quebra do estigma. Segundo Maira, o Imama fez o amparo e a palavra chegarem aonde deveriam através de voluntárias treinadas, que ela define como verdadeiras “influencers”.
São figuras que há 30 anos já buscavam formas de influenciar outras mulheres a se cuidarem e políticos a trabalharem pela causa.
— Ter câncer de mama é um diagnóstico muito pesado. Num primeiro momento significa ameaça à vida, autoestima e sexualidade. Mas fica mais fácil se a gente consegue dividir, conversar, se apoiar. Storytelling é uma coisa poderosa: o que o Imama faz é mostrar a história de pacientes para inspirar outras. A pessoa que já passou por isso é sabedora do que acontece no processo e pode dizer “Eu passei por isso e estou aqui”.
É por isso que ainda estamos aqui, passados 30 anos — relata a médica.
Junto com outras entidades, o Imama participou da elaboração das principais normas que amparam as pacientes. É o caso das leis da Reconstrução Mamária (de 1999 e 2018), que tornaram obrigatório no Sistema Único de Saúde (SUS) que a cirurgia plástica para reparação e simetrização das mamas seja feito no momento da cirurgia que porventura as tenha mutilado.
Também é o caso da Lei dos 60 Dias, aprovada em 2012.
— Pouca gente sabe, mas foi uma luta nossa a aprovação da Lei que garante a qualquer paciente oncológico ter seu primeiro tratamento em, no máximo, 60 dias após o diagnóstico da doença. É uma medida federal, mas hoje em dia até a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que dois meses é o prazo máximo. E isso começou com a gente — orgulha-se Maira Caleffi.
Para além dos avanços no tratamento que possibilitam resultados melhores às pacientes, na avaliação da presidente de honra do Imama, a maior evolução em 30 anos foi conseguir sufocar o estigma e o preconceito em torno da doença. A paciente com câncer de mama atualmente pode vir para frente, falar da sua condição sem preconceito e caminhar ao lado de suas pares na Caminhada das Vitoriosas, que tinge de rosa as ruas de Porto Alegre há mais de 20 anos.
Já para os anos que virão, o desejo da médica é que essa doença, que é a principal causa de morte por câncer em mulheres, seja tratada com ainda mais seriedade.
— Aquilo o que sonhei lá no ano de 1993 ainda não se realizou, que era que as mulheres não morressem mais por uma doença que tem cura. Essa é a minha dor — lamenta, seguindo o desabafo sobre uma realidade que demonstra poucas mudanças: — A mulher que perceber que está com “uma coisa aqui no peito” precisa receber atendimento em menos de uma semana e fazer seus exames diagnósticos em, no máximo, 15 dias. Hoje em dia, o que acontece é que é tudo demorado. Assim, perdemos tempo e perdemos vidas. Chega! Não podemos mais prescindir dessa urgência.