Adoção do uso de câmeras corporais pela Guarda Municipal de Porto Alegre é considerada uma inovação positiva e que profissionaliza a atuação da corporação. Além disso, especialistas sustentam que a tecnologia é uma oportunidade de transmitir imagem de transparência e credibilidade para a comunidade.
No entanto, destacam um ponto frágil, o qual pode comprometer a efetividade da aplicação tecnológica. A possibilidade do agente desligar o equipamento, conforme analistas, coloca em dúvida a validade do uso das câmeras.
— Se as câmeras puderem ser desligadas, mesmo que não haja má-fé, que seja por descuido, pois estes servidores trabalham sob demandas de emergência, sob pressão e forte emoção, haverá prejuízo à apuração — analisa o coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), Roque Reckziegel.
O advogado sustenta que a OAB vê com muito bons olhos a adoção destes equipamentos pelas forças de segurança pública e pondera que a filmagem pelos agentes pode eliminar dúvidas sobre a legitimidade das ações.
— Nossa Comissão de Direitos Humanos recebe muitas denúncias. Todas são apuradas. Aquelas que indicam excessos e violações de direitos são conduzidas aos órgãos competentes e acompanhadas pela Ordem. Outras representam acusações falsas e não geram procedimentos. Por esta necessidade de diferenciação, a imagem ininterrupta é fundamental — argumenta Reckziegel.
Para a doutoranda pelo programa de pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS Luiza Correa de Magalhães Dutra, além do registro ininterrupto das imagens, também é relevante o tempo de armazenamento dos registros. No caso de Porto Alegre, a proposta é manter as gravações armazenadas por 30 dias.
— Este é um período muito curto para a realidade da nossa sociedade. Quem conhece o sistema de justiça criminal e o procedimento de investigação sabe que o tempo de execução destes processos pode demorar mais que 30 dias. Se houver armazenamento máximo por este período, as provas produzidas pelas imagens podem ser perdidas. Pode não haver tempo hábil para o requerimento de acesso e a inclusão destas evidências como componentes de apurações — argumenta a doutoranda.
Os equipamentos para registro de imagens começaram a ser utilizados na segunda-feira (24). Conforme a Secretaria de Segurança da Capital, diversos atendimentos ocorreram e nenhuma necessidade de revisão das gravações ou pedido de acesso aconteceram até quinta (27). Duas prisões foram efetuadas: a de um foragido abordado em patrulhamento na Praça São Sebastião e a de um homem interpelado sob o viaduto da Avenida João Pessoa que estaria portando 12 pedras de crack.
Em ambos os casos, os alvos da ação foram encaminhados para procedimentos em unidades da Polícia Civil. A primeira das duas situações teve trechos das gravações cedidos para esta reportagem.
Prefeitura não permite desligamento intencional
Conforme o secretário de Segurança de Porto Alegre e chefe da Guarda Municipal, Alexandre Aragon, o protocolo para o uso das câmeras nas fardas exige que o agente utilize o equipamento ligado durante todo o patrulhamento, com exceção de quando ele for ao banheiro ou estiver realizando sua alimentação.
— O sistema de desligamento da câmera é parte de um assessoramento sobre a Lei Geral de Proteção de Dados. O centro de comando acompanhará o deslocamento do agente em tempo real. Em caso de de desligamento intencional, serão tomadas as medidas cabíveis — assegura o secretário.
Gravações são provas em investigações
Para a doutora em Sociologia Letícia Schabbach, professora integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a tecnologia acrescenta aspectos positivos para o processo da segurança comunitária e para as relações.
— É uma segurança para o próprio agente e pode confirmar as práticas adequadas. Reduz a eventualidade de episódios de excesso no uso de força em ocorrências de conflito. Amplia o cuidado dos agentes na aplicação do procedimento e permite a supervisão contínua do comando e o monitoramento da sociedade — define a doutora.
A professora e pesquisadora também destaca sua preocupação com a eventual descontinuidade dos registros e ineficácia da tecnologia em situações nas quais será mais relevante, como as contestações sobre a adequação dos procedimentos.
O sociólogo integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Rodrigo Azevedo aponta que a presença de câmeras pode reduzir conflitos e violência, "desincentivando o uso excessivo de força, tanto por parte dos agentes, quanto dos cidadãos, promovendo interações mais calmas e profissionais".
— As gravações também podem ser usadas para analisar o desempenho dos agentes, identificando áreas de melhoria e fornecendo material realista para programas de treinamento, além de servirem como provas em investigações criminais, judiciais e administrativas, ajudando a agilizar processos legais e a reduzir disputas sobre os fatos — pontua Azevedo.
Tecnologia ainda tem limitações
Contudo, de acordo com o especialista em tecnologia, Ronaldo Prass, há limitações técnicas em equipamentos, mesmo entre os mais atualizados, inclusive sobre a capacidade de processar e armazenar dados.
— Falando sobre áudio e vídeo, não tem memória suficiente para gravar toda informação de um dia. Em um mundo perfeito, e eu acho que não existe, ou se existe é muito caro, essas câmeras deveriam ficar o tempo todo fazendo um streaming (transmissão contínua de arquivos de áudio ou vídeo de um servidor para um receptor). E, por contingência, em uma área com dificuldade para telecomunicação, ela armazenar temporariamente e, depois, descarregar no servidor — descreve Prass.
Para o especialista a possibilidade de descontinuar registros compromete a finalidade da aplicação, que é promover a revisão das ações em segurança pública.
As câmeras
O equipamento usado pelos guardas municipais de Porto Alegre é o modelo DMT-16, da marca Multieyes. Além das 160 câmeras, foram adquiridas oito centrais de carregamento.
Os registros
A câmera é capaz de registrar vídeos e fotos de alta resolução, em ambientes iluminados ou escuros, por meio de iluminação infravermelha. Permite também a gravação de áudio.
Acionamento
A orientação é que os agentes liguem o equipamento sempre que iniciarem um atendimento. O servidor não consegue apagar o arquivo.
Armazenamento
As imagens serão armazenadas em servidores de acesso restrito, sem transmissão em tempo real. Os registros ficarão disponíveis pelo período de 30 dias. O acesso externo aos arquivos só se dará mediante demanda.