Sábado passado, Vitória Walltrick, Ketty Evelyn, Daffni Victória Lobo e Vitória dos Santos apareceram pela primeira vez na televisão. Foi no programa Criança Esperança, num quadro em que precisavam dizer frases racistas como "Eu não gosto da sua cor", "Seu cabelo é horrível", a uma mulher negra.
Passada uma semana, as quatro meninas que frequentam a ONG Anjos Voluntários, em Caxias do Sul, relembram das gravações e das repercussões do vídeo, que ganhou mais projeção no decorrer dos últimos dias, emocionando muita gente pelas redes sociais.
– Foi bonito, emocionante aparecer na tevê. Mas aquilo que a gente dizia não eram coisas legais – lembra Ketty.
Na produção, alguém explicava às pequenas que aquilo era uma dramatização, uma brincadeira. Mas criança leva brincadeira a sério.
– Deu um nervosismo na hora de gravar. Não conseguia falar aquilo, que era muito pesado, não faz parte do meu dia a dia – conta Daffni.
Esse incômodo diante de um discurso recheado de frases preconceituosas coletadas na internet sinalizou uma perspectiva diferente para deslizes de intolerâncias raciais tão recorrentes na contemporaneidade.
– O mundo não melhora por causa de pessoas que fazem aquilo com as outras. O vídeo talvez ajude quem age com racismo a olhar o mundo com outro olhar – diz Vitória dos Santos.
A experiência reorganiza a postura das meninas. Ou melhor, dá uma convicção precoce sobre conceitos de cidadania, tolerância, igualdade, convívio.
– A gente emocionou muito as pessoas e, quem sabe, essas pessoas vão pensar duas vezes antes de fazer aquilo. Às vezes também fazemos isso, mas é preciso ser diferente, mudar a vida, mudar o jeito de agir. Temos de ser nós mesmos e enfrentar o que temos de enfrentar. Mudar o mundo por aquilo que a gente quer – afirma Daffni.
Se, como diz o diretor do Criança Esperança Rafael Dragaud, estas quatro meninas deram um show de humanidade a televisão, as duas Vitórias, Daffni e Ketty agora têm novas responsabilidades no cotidiano da escola e da Anjos Voluntários.
– Percebi a reação das pessoas, que ficaram com pena da mulher para quem a gente falou as frases. Não dá para fazer igual. Se cada um fizer a sua parte, aos poucos tudo fica melhor – diz Vitória Walltrick.
Vitória Walltrick: "Na escola acontece isso."
Vitória Walltrick tem 10 anos e estuda na 4º ano. Meio tímida, conta que se sentiu envergonhada ao gravar e aparecer na televisão. Seu jeito delicado e olhar manso se dissipa quando fala, convicta, sobre o que experimentou no programa televisivo.
– Aquilo que a gente falou para ela não é uma coisa boa. Eu não gostaria que falassem para mim e também não gostaria de falar para ela. É racismo – declara.
A menina diz que o convívio com situações como as simuladas no Criança Esperança é recorrente no cotidiano.
– Na escola acontece isso. Ficam se xingando, chamando de coisas que não são legais – diz, refletindo sobre o que fazer diante dessas situações:
– A gente tem de falar com quem sofre isso, dizer para elas não se preocuparem.
Questionada sobre a sensação de aparecer na televisão, ela responde com um sorriso silencioso, emendando com o comentário que mais ouviu sobre o vídeo em que participou.
– Falaram “coitada daquela mulher”.No finzinho da conversa, a timidez volta a falar alto. E ela silencia ao ser questionada se já sofreu alguma discriminação.
Ketty Evelyn: "Não conseguia dizer aquilo. Era muito feio.
O sorriso matreiro e delicado de Ketty Evelyn, oito anos, 3º ano, é sincero ao dizer que foi emocionante aparecer na televisão. Sim, foi bonito, mas...
– O que a gente disse foram coisas ruins, a pessoa que ouviu ficou mal, ficou triste. Por isso a gente não conseguia dizer aquilo. Era muito feio – pondera a menina, falando mais com o olhar do que com palavras.
Ela acena com a cabeça, confirmando que também ficou triste. E diz que, sim, a cor da pele dela e de muitas outras pessoas iguais é o fator mais recorrente para gerar essas situações que a entristecem.
– Uma pessoa é de uma cor e tem outra que não é do mesmo jeito dela e não gosta daquela cor e aí fica falando – comenta Ketty, tentando explicar alguns matizes da discriminação.
Ketty tem dois irmãos, Vitor, de oito anos, e Luigi, ainda bebezinho. Os laços familiares são um aprendizado diário.
– A gente se ajuda a brincar.
O mundo da infância favorece à liberdade até do posicionamento da menina negra que começa a esboçar seu jeito de defender do racismo: – Se uma pessoa falar essas coisas, eu não vou gostar.
Para Ketty, a receita para uma humanidade menos intolerante e mais fraterna é bem simples:– A gente precisa se abraçar para ficar feliz.
Daffni: "Cada um fazendo a sua parte o mundo acaba melhor."
O nervosismo diante das câmeras deu lugar a um sentimento de culpa em Daffni Victória Lobo assim que começou a ler as frases preconceituosas do roteiro. A menina de 12 anos e estudante da 7ª série não concorda com aquilo que foi simulado na atração da Globo.
– Fiquei mais nervosa ainda quando fui lendo as frases. A sensação era horrível, senti culpa e medo – relembra.
Por isso, ela não seguiu adiante nos xingamentos à mulher negra que estava em frente dela. Mas ela sabe que essa não é uma postura da maioria das pessoas.
– Durante a gravação fui lembrando de momentos que eu vi, de preconceitos contra gordos ou magros, gente que usa óculos. Hoje em dia as pessoas são muito racistas, a humanidade está muito preconceituosa – descreve a menina.
Tá, mas a Daffni já sofreu preconceito? O choro é a resposta. Depois de alguns soluços, a fala é quase sussurrada:
– Não quero falar sobre isso.
Mas a garota retoma o fôlego e reflete sobre o que fazer:
– A experiência foi muito boa, principalmente por mostrar que o preconceito é uma forma horrível de tratar as pessoas. A gente emocionou as pessoas e talvez elas pensem antes de agir de forma preconceituosa. Cada um fazendo a sua parte, o mundo acaba mudando.
Vitória dos Santos: "Ela estava passando pelo que passei."
Vitória dos Santos chorou muito ao gravar o vídeo do Criança Esperança. A menina de 12 anos, estudante da 6º ano, relutava em emitir xingamentos racistas. Tinha razões bem íntimas.
– Naquela hora, ela estava passando pelo que eu passei. Por isso chorei muito – lembra.Ela conta que não agiu da melhor forma quando sofreu racismo. Teve uma atitude violenta. Mas...
– Violência gera violência. Para combater o preconceito, a gente não tem de dar bola. Temos de levantar a cabeça, fazer de conta que não é conosco e contar com a ajuda dos amigos – fala.
A menina enumera os tantos tipos de preconceitos que vê por aí:
– Por causa da classe social, da cor, se é magro, se é gordo, se usa óculos, se tem aparelho nos dentes. Com menos bullying e menos preconceito, o mundo fica melhor.Depois das lágrimas exibidas em rede nacional, Vitória sente que algo mudou em sua vida.
– Sou uma pessoa que está ensinando os outros sobre coisas que precisam mudar. E tem tanto para mudar...
Para fazer isso, Vitória conta com serenidade, transparência e um sorriso no rosto.
– Temos de ser nós mesmos e enfrentar o que tiver de enfrentar. Mudar as coisas por aquilo que a gente quer.