Eles passarão. Nós ficaremos
Um espectro ronda as ruas de Porto Alegre - o espectro do ressentimento masculino. Todos nós, homens, estamos em aliança sagrada para exorcizar esse espectro nascido da massiva presença de australianos, holandeses e, que Deus nos perdoe, em breve argentinos na noite desta pujante metrópole regional.
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Na última semana, eles invadiram a cidade por causa da Copa. Começaram então os boatos de que o pedigree internacional alterou o comportamento porto-alegrense. Conforme as primeiras informações que chegavam, eles eram caçados pelas amazonas gaúchas ao gritos de "aussie, aussie!", abatidos e beijados pelos bares da Cidade Baixa e do Moinhos. Tudo indicava que os séculos de boa nutrição, no caso holandês, e de uma rotina de esportes radicais, que é o que se faz na Austrália, produziram um diferencial competitivo com o qual o nosso fenótipo subnutrido e preguiçoso tem dificuldades de competir.
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Pelo Facebook e Twitter, onde opiniões imbecis e sensatas convivem sem proporção alguma, a indignação começou a brotar dos nossos egos feridos: "Malditos gringos!"; "Estão com as nossas mulheres"; "Caçadoras de cidadania"; "Australianos pegaram todas as nativas sem nenhum esforço" - exemplos do que deve ter aparecido na sua timeline nos últimos dias. Há outros comentários. Piores, quase doentes, dos quais vou poupar o estômago do leitor que chegou até aqui.
Mas seria verdade? E se fosse, qual o motivo do fetiche classe média por um romance internacional?
No final da tarde de quarta-feira, decidi investigar. Parte da resposta à segunda pergunta veio antes da primeira. Demografia, meu caro Malthus. A pista veio de Laura Schenkel, uma colega do jornal:
- Há mais mulheres do que homens em Porto Alegre.
Sério? Durante toda a minha adolescência elas eram miragens no meio de um vasto deserto. Os dados do IBGE confirmam a sensação de escassez: a capital gaúcha tem 46,39% de homens e 53,61% de mulheres. Os estrangeiros, em grande maioria homens, teriam apenas reequilibrado o sistema, pegando carona em um clima de festa, bebida e celebração. A Copa, afinal, está acontecendo.
A primeira pergunta não estava ao alcance da internet. Era preciso sair a campo para investigar. (Possivelmente, as próximas linhas vão me causar grande dor de cabeça nas redes sociais). Saí da redação e liguei para um amigo - alguns diriam comparsa. Tiago Fischer, um geólogo que também é músico. Um cara que sabe das coisas.
- Vou me fantasiar de francês e ir pra Cidade de Baixa. Vamos?
- Sério? Pra quê?
- É um teste.
Ele riu da minha demência e topou. A fantasia consistia em um óculos de grau, uma gabardine que me deixa parecido com o Serge Gainsbourg ou com o Inspetor Bugiganga (as opiniões divergem) e quatro semestres de francês no tempo em que o professor monsieur Alexandre Roche era vivo.
No caminho chamei mais um reforço, que permanecerá anônimo, e nos encontramos na Casa Azul, um hostel que fica na Rua Lima e Silva. Por consciência do ridículo, o teste não começou imediatamente. Na arena, australianos bombados e holandeses de 5 metros de altura conversavam com várias brasileiras. Uma delas disse para um australiano que usava uma capa vermelha:
- Tu é real?
Ele era. Eu não. Levou tempo - e bebida - até conseguir encontrar o personagem: francês, 29 anos, sem Facebook, natural de Marselha, que estava parando na casa do amigo geólogo. Engolido o orgulho nacional, comecei a falar em inglês com o terceiro elemento e passar pelos corredores apertados pela quantidade de pessoas com um "pardon" aqui e um "excusez moi" ali. Ah, os sorrisos. Os olhares. Por uma questão linguística tudo havia mudado. É incrível o grau de acesso para iniciar uma conversa que um problema de comunicação pode causar - mesmo que seja um francês canhestro misturado com inglês com sotaque de terceiro mundo.
Fernanda me disse que iria morar na Bélgica, quis me procurar no Facebook. Giuliana (a grafia não pôde ser confirmada) estudava arquitetura e era muito gata. Carol era de São Borja e o resto eu esqueci. Uma quarta, não muito bonita, cujo nome não fiquei sabendo, passou a me perseguir com o olhar depois de ouvir um "pardon". Ou pelo menos é o que quero acreditar.
Embora nenhum beijo tenha sido dado até o final do teste - por motivos éticos, diga-se -, empiricamente eu havia comprovado os motivos para tanto ressentimento masculino. Era como se fosse Carnaval e ninguém tivesse nos convidado. A novidade nos deixou em segundo plano na voracidade eufórica das mulheres em tempos de Copa.
Estamos vociferando contra estrangeiros. Mas teremos nossa vingança. Lenta. Calculada. Inexorável. Durante o auge do inverno. A Copa passará. Eles irão embora. E não há Facebook, Skype, Twitter, Whatsapp que retire o vazio da distância. Sobraremos nós. Ressentidos, com o ego ferido e um francês digno de pornochachada brasileira.
Subnutridos e preguiçosos, mas próximos, presentes - e em menor número.