UMA CIDADE

À PROCURA

DE RESPOSTAS

Ó

rfão de mãe, rejeitado pela madrasta e negligenciado pelo pai, Bernardo passava os dias circulando entre casas de amigos. As memórias atordoam os que o conheciam. Poderiam ter feito algo para impedir a sua morte? Um ano depois, a pergunta continua ecoando nas esquinas de Três Passos. Há moradores que evitam passar em frente à casa de Bernardo, tentando desviar o próprio desconforto. Outros repensam palavras e condutas, à procura de explicações.

— A gente via que ele pedia socorro, mas socorro de quê? Não era claro — analisa a psicóloga Denise Helena Escher, que trabalhava na escola Ipiranga na época em que Bernardo estudava lá.

Muitos conhecidos já sabiam, por exemplo, que ele tomava remédios tarja preta sem supervisão. Que não tinha a chave de casa. Que mendigava o lanche dos colegas. Que ficava até a noite em casas alheias sem que o pai telefonasse para procurá-lo. Que havia ido ao fórum reclamar de maus-tratos. Juntas, as peças parecem agora formar um nítido cenário de desamparo, o que provocou uma série de questionamentos sobre a conduta das autoridades na época. Vídeos recuperados posteriormente pela polícia revelaram cenas de brigas domésticas gravadas por Leandro Boldrini, em que o filho empunhava um facão, enquanto o pai provocava: "Vamos ver se tu é corajoso. Isso aqui vai ser mostrado para quem tu quiser saber. Vamos, machão".

Ainda assim, a maioria dos que conviviam com Bernardo lembram dele como uma criança sorridente, o que teria dificultado o diagnóstico da extensão dos danos que sofria. A psicóloga Denise Escher observa que o menino não apresentava traços depressivos. Tanto que seus trabalhos na escola eram sempre coloridos, como os últimos desenhos que deixou — um pássaro azul e um palhaço mascarado, agora emoldurados e pendurados na sala de aula da turma em que estudava. Bernardo tampouco tinha marcas visíveis de maus-tratos. Embora deixasse claro que não gostava da madrasta, pouco dizia quando chamado a conversar na escola. Na memória de Denise, Bernardo aparece com os braços cruzados em cima do rosto: "Para, não quero mais falar".

A professora Simone Müller, mãe de um dos melhores amigos do menino, também fica repassando em sua mente tudo o que aconteceu. A voz ainda embarga quando toca no assunto. E as respostas não vêm.

— Se o Bernardo caísse na minha mão de novo, eu não saberia o que fazer de diferente — angustia-se.

As lições deixadas pela sua história, ao menos, têm contribuído para modificar o olhar sobre outras crianças. No Conselho Tutelar de Três Passos, o número de denúncias de maus-tratos mais do que dobrou no último ano, saltando de uma média de 10 para 30 ligações mensais.

— Se o vizinho ouve uma criança chorando já liga. Muitas vezes é manha, mas mesmo assim a gente vai fazer o atendimento, para conferir — conta a conselheira tutelar Rosane Nascimento.

Outro efeito do caso foi a desconstrução dos estereótipos sociais, confirmando que uma boa renda familiar não é garantia de proteção à infância. Antes, a rotina dos conselheiros era averiguar suspeitas em casebres da periferia da cidade. Desde então, começaram a tocar também nos interfones da classe média.

— A gente trabalha com a hipótese de que pode acontecer com qualquer um. Alguém é bom até deixar de ser bom — raciocina a conselheira.

Pelo Brasil afora, Bernardo é título de comunidades que o chamam de Pequeno Príncipe, de Anjo Eterno. Entre os católicos,  começam a surgir sinais de devoção ao menino que sozinho procurou a igreja, concluiu a catequese e se tornou coroinha. A paróquia chegou a receber a ligação de uma devota de Belém (PA) perguntando sobre a beatificação do menino. Os religiosos são cautelosos diante dos apelos. O padre Helio Luiz Welter diz que seria necessária a comprovação de pelo menos um milagre para que se tornasse possível esse reconhecimento pela Igreja.

— Aí que Deus vai se manifestar — temporiza, lembrando que um processo formal dependeria de uma série de protocolos e investigações a serem executados em instâncias superiores da Igreja.

Independentemente das formalidades, Bernardo já mobiliza peregrinações. O matagal em Frederico Westphalen onde seu corpo foi encontrado virou destino de visitação. Moradores organizam excursões para visitar a cova, que hoje está cercada de banners com pedidos de Justiça. Na véspera do Dia da Criança, cavalarianos foram ao local em comitiva e prestaram homenagens, deixando como marca uma placa: "1ª Cavalgada da Divina Proteção às Crianças e Homenagem ao Menino Bernardo". De tão procurado, o ponto recebeu placa de sinalização, com uma seta indicando o caminho em cartaz pendurado em uma árvore: "(A) 30 metros, local onde foi encontrado o menino Bernardo".

Não é apenas a compaixão que alimenta o culto. Percorrendo regiões do interior, o padre Rudinei da Rosa ouve com frequência dilemas de fiéis suscitados pelo drama. A própria Igreja, frequentada por Bernardo, é alvo de questionamentos.

— Percebo que há uma culpa velada, de as pessoas se sentirem de certa forma responsáveis pelo menino, pensando: a gente podia ter feito alguma coisa. E alguns perguntam: onde a igreja estava? A igreja estava no mesmo lugar onde a polícia estava, onde o promotor estava, onde todos os órgãos responsáveis por crianças em Três Passos estavam. E hoje continua indignada com toda a comunidade — reflete.

No Conselho Tutelar de Três Passos, o número de denúncias de maus-tratos mais do que dobrou no último ano, saltando de uma média de 10 para 30 ligações mensais.

O matagal em Frederico Westphalen onde o corpo de Bernardo foi encontrado virou destino de peregrinação.

 
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