A "virada" dos peixes, quando os cardumes se aproximam da superfície, nas margens, em busca de oxigênio, é um sinal de má qualidade da água. Durante a viagem fluvial de cerca de 10 quilômetros acompanhada por ZH, esse não seria o único indício de que o Rio dos Sinos segue sob ameaça mais de uma década depois de ter sofrido a maior mortandade de peixes já registrada na região.
Em 6 de outubro de 2006, João Batista Chaves cumpria sua rotina – colocou o barco na água, ligou o motor, zuniu rio abaixo – quando, depois de uma curva, não enxergou mais a cor marrom do Sinos. Na superfície, reluzia uma camada prateada de peixes mortos em razão da falta de oxigênio. Foi o resultado fatal da combinação entre baixa vazão do rio, contaminação por esgoto doméstico e uma carga de chorume lançada pela empresa Utresa que atuou como a gota de água suja que faltava para fazer transbordar a tragédia ambiental.
– Foi uma visão muito triste aquele monte de peixes mortos – recorda Chaves.
A tristeza continua. A morte de quase 200 toneladas de pescado ganhou repercussão, levou o ex-diretor da Utresa Luiz Ruppenthal a ser condenado (a pena de 30 anos foi reduzida para sete anos e meio), mobilizou instituições ambientais – mas não melhorou a qualidade da água no Sinos. Isso faz a secretária estadual do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Ana Pellini, admitir que o rio pode voltar a entrar em colapso caso ocorra uma nova estiagem prolongada – ao reduzir a vazão fluvial, a seca aumenta a concentração dos poluentes e diminui ainda mais o oxigênio disponível.
– Houve avanço na parte industrial, com um melhor tratamento dos efluentes pelas empresas. Mas a qualidade da água continua praticamente a mesma nesses 10 anos. Seria tempo suficiente para despoluir o rio, tendo como exemplo o que é feito na Europa – reconhece a secretária.
Mas, se houve avanços na fiscalização das indústrias, por que a água do Sinos continua imprópria? A principal razão é a falta do investimento necessário para purificar o esgoto doméstico. Cerca de 90% do esgoto produzido nos 32 municípios da bacia hidrográfica segue sendo despejado sem tratamento no manancial. São Leopoldo tem o melhor desempenho neste quesito, com 25% de tratamento, enquanto Novo Hamburgo tem em 4,5% (as duas cidades contam com sistemas próprios de saneamento), e os demais municípios, atendidos pela Corsan, alcançam cerca de 11,8%.
– A poluição, ao contrário do passado, não tem mais foco industrial. O grande problema é o esgoto não tratado despejado pelos 32 municípios da bacia por falta de investimentos em saneamento – confirma o doutor em Ecologia, ex-diretor técnico da Fepam e professor da Unisinos Jackson Müller.
Em vez de melhorar, a situação chegou a ficar pior em São Leopoldo nos últimos anos. O município purificava cerca de 50% de seus dejetos, mas problemas de manutenção em duas estações de tratamento reduziram esse índice. A nova administração municipal promete recuperar a capacidade de depuração nos próximos meses.
– Esperamos chegar, até o começo do ano que vem, a 45% ou 48% de esgoto tratado. Mas não resolve um município investir e outros não. Todos precisam fazer a sua parte – observa o diretor do Serviço Municipal de Águas e Esgotos de São Leopoldo (Semae), Nestor Schwertner.
A Corsan informa por meio de nota que, "com as obras em andamento, há expectativa de aumento do índice em médio prazo". Desde 2006, entraram em operação estações em Esteio, Igrejinha, Gramado, Canela, Glorinha e Sapiranga. Mas elas operam abaixo de sua capacidade. A unidade de Glorinha, por exemplo, trata 216 metros cúbicos por dia, enquanto poderia limpar 816 metros cúbicos. Uma das dificuldades é providenciar a ligação das residências às redes coletoras.
– Nós temos um rio com pelo menos 110 espécies de peixes que abastece cerca de 2 milhões de pessoas. Em outro país seria tratado como algo de grande importância ecológica. Mas como a nossa sociedade trata o Sinos? Jogamos lixo, esgoto e estamos de costas para ele – lamenta Jackson Müller.
UMA VIAGEM AO RIO
Logo que o barco a motor começa a percorrer o Rio dos Sinos, em uma ronda da fiscalização municipal de São Leopoldo acompanhada por ZH, a primeira impressão é de que se está em um curso d'água aprazível. A embarcação cruza por um grupo de jovens em caiaques, mas a imagem inicial logo se desfaz em razão do cheiro de esgoto e da visão de camadas de lixo acumulado nas margens.
O barco pilotado pelo fiscal João Batista Chaves logo passa por um ponto de mineração irregular – outra chaga que afeta o manancial. Para coletar areia mais rapidamente, dragas deixam as áreas de exploração permitida e escavam a margem do Sinos. Isso derruba árvores para dentro do leito e favorece o assoreamento. Em seguida, outro problema frequente vem à tona: o lançamento de lixo.
Garrafas plásticas, sacos com lixo seco e orgânico e outros materiais descartados pela população se acumulam nas curvas e entre os galhos da vegetação mais baixa que encosta na água.
– Já foi ainda pior. Chegávamos a tirar uns cem sacos cheios de plástico por dia. Hoje não chega a tanto – analisa Chaves.
Poucos minutos depois, cruza-se o ponto onde o arroio João Corrêa despeja um jorro escuro de água suja no Sinos. Logo à frente pode-se perceber cardumes de peixes se aproximando da superfície para fugir da poluição e buscar oxigênio. Mas o rio reserva surpresas ainda mais desagradáveis.
Ao logo das curvas há pelo menos três carros depenados e abandonados na margem, seminaufragados, e avista-se até um boi morto flutuando. Mesmo assim, existem famílias que ignoram os riscos da poluição e lançam iscas à água em busca de um peixe para comer. E conseguem: a vida aquática, apesar de tudo, recuperou-se da mortandade de 2006 e resiste como pode às agressões feitas pelo homem.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Biologia da Unisinos, Uwe Schulz afirma que foi feito um estudo para verificar o impacto do desastre de 11 anos atrás nas espécies de peixe do Sinos. Como não morreram animais nas partes mais altas do curso d'água, o trabalho atestou que os estoques de cardumes levaram entre dois e três anos para voltar à quantidade verificada antes de outubro de 2006, mas conseguiram repovoar o manancial:
– A maior preocupação é que esse rio abastece milhões de pessoas.
Schulz sustenta que os cuidados com a saúde do Rio dos Sinos não devem ter como objetivo a preservação da vida apenas em seu leito, mas também fora dele.
Mortandade de peixes em ZH
Veja como Zero Hora noticiou o caso à época
COMO ESTÁ HOJE
O rio segue um dos mais poluídos do país, afetado principalmente pela liberação de esgoto cloacal não tratado. O ex-diretor da Utresa Luiz Ruppenthal foi condenado a 30 anos de prisão, pena posteriormente reduzida para sete anos. Ele aguardou o julgamento de recursos em liberdade, e o Ministério Público solicitou à Justiça o início do cumprimento da pena em regime semiaberto – o que pode ocorrer a qualquer momento.
MORTANDADE DO RIO DOS SINOS
CAUSAS
A tragédia ocorreu devido a uma combinação de fatores que eliminou o oxigênio do rio. Veja as principais:
O QUE FOI
Em outubro de 2006, o Rio dos Sinos sofreu a maior mortandade de peixes já registrada no Estado. Cerca de 90 toneladas de pescado foram recolhidas, mas estima-se que quase 200 toneladas tenham morrido – o equivalente a cerca de 200 automóveis populares, como um Gol.
ÁREA ATINGIDA
Cerca de 20 quilômetros do Rio dos Sinos, entre a foz do Arroio Portão e o Passo do Carioca.
1) Baixa vazão:
onde costumavam correr pelo menos 80 metros cúbicos de água por segundo, no momento da mortandade passavam apenas 12 metros cúbicos – cerca de sete vezes menos – em razão de uma estiagem.
2) Poluição doméstica:
o trecho de 20 quilômetros do Sinos onde houve a mortandade recebe o esgoto de 41% dos 1,2 milhão de habitantes na bacia hidrográfica do Sinos quase sem tratamento. Cerca de 90% do esgoto da região ainda é lançado no rio sem tratamento.
4) Piracema:
a poluição e a queda de vazão coincidiram com o período de reprodução dos peixes, quando sobem rio acima. Isso aumentou a quantidade de animais mortos de pelo menos 16 espécies.
rio dos sinos,
manancial sufocado
Fiscal da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de São Leopoldo, João Batista Chaves, 61 anos, coloca o barco na água e liga o motor para percorrer um trecho do Rio dos Sinos em busca de irregularidades como coleta de areia em local impróprio ou descarte de lixo. Ao percorrer o manancial, passa por um conhecido em uma embarcação que segue em sentido contrário. O homem dá um grito e faz um gesto com a mão em forma de concha:
– Os peixes estão começando a virar!
DESIGN
Thais Longaray
EDIÇÃO
Luan Ott e Pedro Moreira
IMAGENS
Fernando Gomes
TEXTO
Marcelo Gonzatto
O QUE FOI
Em outubro de 2006, o Rio dos Sinos sofreu a maior mortandade de peixes já registrada no Estado. Cerca de 90 toneladas de pescado foram recolhidas, mas estima-se que quase 200 toneladas tenham morrido _ o equivalente a cerca de 200 automóveis populares, como um Gol.
ÁREA ATINGIDA
Cerca de 20 quilômetros do Rio dos Sinos, entre a foz do Arroio Portão e o Passo do Carioca.
Foto: miro de souza, bd
Foto: miro de souza, bd
Foto: ronaldo bernardi, bd
Foto: jackson muller, divulgação
Foto: miro de souza, bd