Não se trata de força de expressão. A desconfiança sobre a explicação oficial para o episódio – de que seria efeito da proliferação excessiva de algas na água – manteve aberto até este ano o Inquérito Civil nº 1.29.006.000086/2003-06 na Procuradoria da República em Rio Grande. A principal versão alternativa para a mortandade de mariscos, gatos, cachorros, galinhas e até cavalos é a de que um potente herbicida teria vazado dos porões do navio brasileiro Taquari, encalhado sete anos antes na costa uruguaia. Na véspera da maré vermelha, uma tempestade terminou de afundar a embarcação e poderia ter derramado a substância nociva no Atlântico Sul.
Um abaixo-assinado foi encaminhado à Procuradoria em 2003, em nome do Centro de Estudos Ambientais de Pelotas, com um pedido de retomada das investigações. As conclusões oficiais já haviam sido confrontadas em depoimentos prestados por especialistas à Assembleia Legislativa cinco anos antes disso, em uma rodada de debates que levou à publicação do chamado Relatório Verde. O nome fazia alusão ao compêndio com as conclusões do governo estadual sobre o fenômeno, apelidado de Livro Branco (o nome oficial era Um Agravo Inusitado à Saúde, que o ambientalista José Lutzemberger citava ironicamente como "Um Agravo Inusitado à Inteligência") e publicado em 1978.
Um dos objetivos do pedido de reabertura do caso era avaliar o risco de contaminação se ocorrer um vazamento da suposta carga química do navio naufragado a cerca de cem quilômetros de Hermenegildo. A procuradora da República em Rio Grande, Anelise Becker, preferiu não conceder entrevista. Informou por e-mail que, após uma instrução inicial, foi tentada, "junto à Furg, a elaboração de modelagem de dispersão de poluentes na região do naufrágio do Navio Taquari".
A investigação enfrentou um mar de dificuldades. Em 27 de março deste ano, a Universidade Federal do Rio Grande (Furg) respondeu que não seria possível fazer as simulações solicitadas na petição encaminhada à universidade.
– Teríamos de simular uma quantidade enorme de cenários, o que não é viável. Seria possível chegar algo do Uruguai até aqui? Sim, temos águas que saem do Rio da Prata e vêm para cá, mas não temos informações fundamentais como a concentração inicial da substância, de que cargas estamos falando, quantas delas teriam se rompido – argumenta o doutor em Oceanografia Omar Moller Jr., do Instituto de Oceanografia da Furg.
Pedidos de informações remetidos a autoridades uruguaias não foram respondidos, e a Dow Chemical Brasil relatou não ter documentos sobre o acidente com o navio ou a carga que ele transportava. Em razão disso, o inquérito civil acabou arquivado em julho deste ano, quase 40 anos depois da tragédia, sem esclarecer o episódio. Secretário da Saúde do Estado à época, o ex-governador Jair Soares respalda as conclusões do Livro Branco. Até mesmo a participação do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão do governo militar foi especulada à época:
– Nunca encontrei nada que levasse a crer que possa ter sido esse navio (a causa da maré vermelha). E posso assegurar que o SNI não teve qualquer ingerência nesse episódio.
Na época, uma entidade chamada Centro de Estudos Toxicológicos, de Pelotas, chegou a divulgar um laudo apontando a presença de uma substância chamada isotiocianato de metila na água.
– O isotiocianato é um poderoso defensivo usado para tratamento do solo antes do plantio. Em Hermenegildo, notamos que a vegetação das dunas estava amarelada, queimada. Também explicaria a irritação respiratória – opina o diretor do Centro de Pesquisas Oceanográficas da Furg na época e doutor em Oceanografia Biológica Norton Gianuca.
O isotiocianato não foi encontrado nos exames oficiais, mas Gianuca acredita que isso pode ter ocorrido pela demora de mais de uma semana para o governo fazer as coletas desde a eclosão da maré mortal. A servidora aposentada da Fundação Zoobotânica Zulanira Meyer Rosa, que também realizou estudos sobre o incidente, aposta em fenômeno natural:
– Foi maré vermelha provocada pelo superdesenvolvimento de algas chamadas dinoflageladas. A tosse era causada pelo fato de que gotículas da água eram levadas pelo vento, como um aerossol.
Os defensores do Livro Branco também argumentam que seria necessária uma quantidade de veneno muito superior às 14 toneladas supostamente carregadas pelo navio para provocar tamanho impacto. Gianuca não crê na resolução definitiva do mistério que ainda preocupa os gaúchos quatro décadas depois de a onda tóxica ter alarmado o Estado:
– Sempre haverá argumentos para um lado ou para o outro. Acho que esse martelo não será batido.
Maré vermelha em ZH
Veja como Zero Hora noticiou o caso à época
as suspeitas
O mistério que envolve a maré vermelha de Hermenegildo, ocorrida em 1978, teve início sete anos antes quando o navio Taquari voltava de sua viagem inaugural aos Estados Unidos carregado com carga tóxica rumo ao porto de Buenos Aires.
Em fevereiro de 1971, a Lloyd Brasileiro, empresa responsável pela embarcação de 160 metros de comprimento, ainda comemorava a aquisição do cargueiro. Um anúncio publicado nos jornais dizia: "Vai correr muita água debaixo do Taquari". Mas o navio é que acabaria embaixo d'água em circunstâncias suspeitas.
Apenas dois meses depois, em um dia de tempo bom, o Taquari se aproximou demais da costa e se chocou contra as rochas de Cabo Polônio, no Uruguai, a cerca de cem quilômetros de Hermenegildo. O comandante enviou uma mensagem por sinal de rádio com o estilo sintético que caracteriza esse tipo de comunicação: "Avaria leme jogou navio pedras Cabo Polônio água aberta. Casa máquinas sem bombas. Necessidade socorro urgente".
A hipótese de que uma falha no leme teria lançado a embarcação contra as pedras, deixando-a semiafundada com uma inclinação de 60 graus, sempre foi alvo das mesmas desconfianças atribuídas à maré vermelha. Como um navio recém-construído, com modernos equipamentos de navegação e uma tripulação treinada poderia sofrer um acidente tão grotesco, ainda mais nas proximidades de um farol?
Circunstâncias ajudaram a amplificar os boatos. A carga tóxica que o Taquari transportava pertencia à empresa americana Dow Chemical, presidida em 1972 no Brasil pelo general Golbery do Couto e Silva – um dos principais ideólogos do período militar. Quando ocorreu a maré vermelha e o gigante dos mares terminou de ir a pique, em 1978, Golbery chefiava o Gabinete Civil da Presidência.
– Nunca se soube de um navio afundar, em dia de mar calmo, diante de um farol – afirma o historiador e morador de Santa Vitória do Palmar Homero Vasques Rodrigues.
Mas qual seria o objetivo de um acidente intencional? Circulavam denúncias, à época, de que o Atlântico Sul era uma espécie de "depósito de lixo" de multinacionais que lançavam materiais perigosos no mar da região. Em 1973, por exemplo, o então embaixador brasileiro Paulo Padilha Vidal queixava-se à Organização dos Estados Americanos (OEA): "O Brasil não se pode manter indiferente à ideia de que o Atlântico Sul é a lata de lixo do mundo". No mesmo ano, o navio finlandês Enskeri tentou despejar 100 toneladas de arsênico na região, mas foi obrigado a retornar à Europa devido à pressão internacional.
Outra hipótese aventada seria a busca pelo seguro da embarcação. O Lloyd brasileiro recebeu à época US$ 7,5 milhões (algo próximo de US$ 29 milhões, ou R$ 96 milhões hoje), pela perda do Taquari. Nenhuma das cogitações foi confirmada até hoje, e os gaúchos seguem mergulhados em incertezas sobre um dos episódios mais dramáticos de sua história ambiental.
o ambientalismo
O movimento ambientalista gaúcho deve muito de seu rápido florescimento nos anos 1970 a dois dos desastres ambientais mais célebres da história do Estado. A instalação da fábrica de celulose Borregaard em Guaíba, no começo da década, e a eclosão da maré vermelha em Hermenegildo, no final dela, deixaram como legado positivo o fortalecimento da luta ambiental no Rio Grande do Sul.
A preocupação com a ecologia ganhou forma em 1971 com a fundação da pioneira Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). O grupo, lançado por nomes como José Lutzenberger, Augusto Carneiro e Alfredo Gui Ferreira, de início defendeu bandeiras como o fim das pedreiras nos morros e das podas de árvores em Porto Alegre – prática que deixava os vegetais disformes e sem flores. Mas suas ações ganharam repercussão e simpatia popular inéditas quando o vento passou a empurrar o mau cheiro exalado das chaminés da Borregaard para todas as direções na Região Metropolitana.
– A Borregaard uniu a população contra ela e colocou todo mundo ao nosso lado. Ninguém aguentava o mau cheiro – conta o ambientalista e presidente da Agapan, Francisco Milanez.
Milanez recorda que, nessa época, o movimento de defesa da ecologia ainda atuava com maior liberdade no período ditatorial, o que também favoreceu seu fortalecimento.
– Como o regime militar ainda não nos enxergava como subversivos, e os jornais precisavam publicar suas matérias, aparecíamos na imprensa quase todo dia – lembra o ambientalista.
Isso mudaria depois de o então estudante de Agronomia da UFRGS Carlos Dayrell desafiar as autoridades e subir em uma tipuana, junto à Avenida João Pessoa, para evitar que fosse cortada. O protesto terminou em golpes de cassetete e lançamento de bombas de gás lacrimogêneo pela polícia, e Dayrell foi conduzido ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) para esclarecimentos.
Em 1978, o fenômeno da maré vermelha deu aos ambientalistas novo salto de visibilidade – desta vez internacional. A mortandade de animais ganhou repercussão no mundo e chamou a atenção até de celebridades como o pesquisador francês Jacques Costeau. Os ambientalistas José Lutzenbeger e Magda Renner, considerada a "primeira-dama" da ecologia, então presidente da Ação Democrática Feminina Gaúcha, se destacaram na luta para esclarecer o episódio e combater o uso de agrotóxicos.
Magda chegou a ter problemas com o governo militar ao mandar confeccionar cartazes onde se lia: "Hermenegildo: o fim do futuro?". Abaixo da frase, estava reproduzida a foto de um corpo que havia aparecido no balneário no mesmo período da maré – mas sem relação com a contaminação da água. A Polícia Federal começou a apreender o material sob justificativa de "criar pânico entre a população". Magda conseguiu reverter o recolhimento e, antecipando-se à onda verde que ganharia força a partir de então dentro e fora do Brasil, declarou:
– A única causa realmente importante é a defesa do meio ambiente.
A "MARÉ VERMELHA" DE HERMENEGILDO
O QUE FOI
A chamada maré vermelha se caracterizou pela morte de organismos marinhos, principalmente mariscos, e bichos como cães, gatos e cavalos entre março e abril de 1978, no litoral sul gaúcho. O fenômeno também provocou tosse e irritação nas vias respiratórias da população nas imediações da praia.
ÁREA ATINGIDA
A praia de Hermenegildo, no município de Santa Vitória do Palmar, a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre, foi a região mais afetada. Indícios de contaminação, como surgimento de alguns animais mortos, foram observado em uma extensão de quase 500 quilômetros entre o Chuí e Tramandaí.
CAUSAS
Até hoje, há controvérsias sobre as verdadeiras causas do fenômeno. As duas principais versões são: fenômeno natural ou contaminação pela carga tóxica de um navio naufragado.
1) Fenômeno natural:
A chamada "maré vermelha" teria ocorrido pela proliferação excessiva de algas chamadas dinoflagelados que, ao morrer, liberam uma substância tóxica. Apesar do nome, nem sempre a contaminação altera a coloração da água. Em Hermenegildo, não foi detectada cor vermelha no mar.
2) Tempestade:
Na véspera da maré vermelha, uma tempestade havia rompido o casco e terminado de naufragar o navio Taquari nas proximidades de Cabo Polônio, no Uruguai, a cerca de 95 quilômetros de Santa Vitória do Palmar. A embarcação, sete anos antes, havia encalhado ao bater contra rochas carregando tonéis com produtos químicos. Acredita-se que o rompimento desses tonéis possa ter espalhado uma substância agrotóxica chamada isotiocianato de metila no litoral.
ANIMAIS MORTOS
COMO ESTÁ HOJE
Não há mais sinal de contaminação, mas parte da população ainda teme que um novo derrame de produto químico naufragado – considerando ser essa a causa do desastre – provoque um novo impacto.
O Inquérito Civil número 1.29.006.000086/2003-06 da Procuradoria da República em Rio Grande, foi arquivado esse ano sem chegar a uma conclusão definitiva sobre as causas da tragédia ou o risco de novo acidente. A apuração esbarrou em dificuldades técnicas para simular qual o efeito de um derramamento tóxico levando em conta diferentes cenários, correntes marítimas e outros fatores.
Mistério no ar
Mesmo após quatro décadas, balneário
ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Mesmo após quatro décadas, balneário
ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Mesmo após quatro décadas, balneário
ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Historiador Homero Vasques
Rodrigues questiona versão oficial
Mesmo após quatro décadas, balneário
ainda convive com incerteza sobre fenômeno
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ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Maré vermelha,
mistério em hermenegildo
Na virada de março para abril de 1978, uma nuvem tóxica com cheiro de amoníaco avançou pelo Litoral Sul deixando para trás animais mortos e uma população em pânico, com ardência na garganta, dores de cabeça e dificuldade para respirar. Os efeitos se dissiparam dias depois, mas, quatro décadas mais tarde, o mistério sobre o que provocou o fenômeno conhecido como maré vermelha, no balneário de Hermenegildo, ainda paira sobre o Estado e desperta temores de que a onda sufocante um dia reapareça.
DESIGN
Thais Longaray
EDIÇÃO
Luan Ott e Pedro Moreira
IMAGENS
Fernando Gomes
TEXTO
Marcelo Gonzatto
O QUE FOI
A chamada maré vermelha se caracterizou pela morte de organismos marinhos, principalmente mariscos, e bichos como cães, gatos e cavalos entre março e abril de 1978, no litoral sul gaúcho. O fenômeno também provocou tosse e irritação nas vias respiratórias da população nas imediações da praia.
ÁREA ATINGIDA
A praia de Hermenegildo, no município de Santa Vitória do Palmar, a cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre, foi a região mais afetada. Indícios de contaminação, como surgimento de alguns animais mortos, foram observado em uma extensão de quase 500 quilômetros entre o Chuí e Tramandaí.
Mesmo após quatro décadas, balneário ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Mesmo após quatro décadas, balneário ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Mesmo após quatro décadas, balneário ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Historiador Homero
Vasques Rodrigues
questiona versão oficial
Mesmo após quatro décadas, balneário ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Mesmo após quatro décadas, balneário ainda convive com incerteza sobre fenômeno
Foto: PAULO DUARTE, BD
Foto: LUCIO VAZ, BD
Foto: AGÊNCIA RBS
Foto: ANTÔNIO CARLOS MAFALDA, BD
Foto: TUDE MUNHOZ, BD