A frustração com o impacto provocado pela empresa mobilizou população e autoridades, e deixou uma lição ao Rio Grande do Sul. Após mudar de controle acionário diversas vezes, a antiga indústria passou a se chamar CMPC Celulose Rio-Grandense e obedece, hoje, a critérios mais rigorosos de segurança ambiental. O cheiro não se espalha mais por dezenas de quilômetros ao sabor do vento, e a fina poeira provocada pelo corte da madeira deixou de cair sobre casas distantes. Mas os problemas não ficaram todos no passado.
– O cheiro que chegava até Porto Alegre era insuportável. Quando o vento soprava para cá, a gente se sentia mal, com dor de cabeça. Era difícil até para tomar café – recorda a moradora da Zona Sul Marlene Corrêa Nascimento.
Ela e o marido, Maurício Nascimento, costumavam olhar para a margem oposta do Guaíba e observar com desencanto a fumaça espessa cuspida pela Borregaard. O que o casal não enxergava era ainda mais prejudicial ao ambiente.
– O cheiro ruim incomoda, mas, muitas vezes, o que mais polui não tem cheiro ou não é tão visível. Eram lançados poluentes diretamente no Guaíba – diz o ambientalista Francisco Milanez, presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan).
Um duto de 2,2 mil metros saía da planta industrial e mergulhava na água que abastece a Capital, onde lançava até 600 metros cúbicos de rejeitos por hora – coisas como fibra de celulose, compostos inorgânicos insolúveis e material orgânico. Em terra, o pó da madeira cortada entrava nas casas de Guaíba e nas vias respiratórias da população, provocando complicações de saúde. Em razão disso, o então secretário estadual da Saúde, Jair Soares, determinou o fechamento da Borregaard por três meses para que fossem cumpridas medidas mínimas de controle da poluição.
– O episódio da Borregaard nos deu mais experiência e sustentabilidade técnica para, depois, fazermos exigências mais duras também aos curtumes, que não tinham tratamento primário. Esse despertar ecológico trouxe vantagens – argumenta Jair.
Os efeitos nocivos sobre a região não foram surpresa para todos. Um laudo técnico elaborado por um servidor da então chamada Coordenadoria de Controle do Equilíbrio Ecológico, vinculada à Secretaria da Saúde, já alertava para o risco de poluição e sugeria a instalação do empreendimento em uma zona remota de São José do Norte – mas acabou convenientemente esquecido em alguma gaveta. O documento assinado pelo bioquímico Millo Raffin, já falecido, antecipava que o cheiro pestilento alcançaria longas distâncias conforme a direção do vento.
Além disso, a fábrica entrou em operação sem o devido alvará. Como o projeto havia recebido um carimbo de "alto interesse para a economia nacional" do governo militar da época em Brasília, o respeito aos trâmites burocráticos não foi uma prioridade. O governo estadual, sob as gestões de Walter Peracchi e Euclides Triches, sonhava com uma montadora de automóveis, mas também estava disposto a abraçar a celulose a qualquer custo.
– Ela (a Borregaard) não tinha nem alvará. O processo não teve o andamento técnico necessário. Com a pressa do governo de inaugurar, de ter emprego, descuidaram da parte ecológica. Mas isso contribuiu para que, hoje, nenhuma fábrica se instale sem respeitar o processo legal no Estado –sustenta Jair Soares.
Borregaard em ZH
Veja como Zero Hora noticiou o caso à época
empresa diz investir em prevenção
Lançado em 2013, o projeto que quadruplicou a planta industrial da CMPC Celulose Riograndense e a tornou capaz de produzir 1,8 milhão de toneladas de celulose por ano ampliou também as preocupações com a segurança do empreendimento. A empresa argumenta que vem investindo para reduzir ainda mais o risco de incidentes _ que levaram à aplicação de nove autuações por parte da Fepam em dois anos, desde julho de 2015. Além disso, no mês passado a empresa anunciou a interrupção de uma de suas linhas de produção até novembro para reparos em razão de um acidente ocorrido em fevereiro com uma caldeira.
A CMPC implantou ações, ao longo do último ano, estabelecidas em acordo com a Fepam por meio de um Termo de Compromisso Ambiental para combater riscos operacionais, emissão de materiais particulados, odor e ruído. Foram investidos cerca de R$ 20 milhões nestas melhorias, além de R$ 60 milhões destinados a evitar problemas envolvendo a eventual liberação de efluentes não tratados adequadamente.
Mesmo assim, duas ocorrências registradas pela Fepam envolveram o lançamento de efluentes fora dos padrões permitidos no ambiente. Em um dos casos, em 19 dezembro do ano passado, os poluentes escorreram até o Guaíba. No outro episódio, em abril deste ano, efluentes não tratados foram identificados na rede de esgoto pluvial.
Também houve um acidente envolvendo o vazamento de gases clorados, bastante tóxicos, que, segundo o auto expedido pela Fepam, causaram a "intoxicação de trabalhadores da empresa" atendidos no hospital do município. O gerente da Qualidade e Ambiente da CMPC, Clovis Zimmer, argumenta que as autuações se devem a "situações pontuais em que ocorreram desvios de não atendimento conforme legislação ou condicionantes de licença de operação que não se materializaram em impactos mensuráveis ao meio ambiente".
– As situações são decorrentes de falhas operacionais correspondentes ao período de ajustes de aprendizagem da nova planta industrial – afirma Zimmer.
A secretária estadual de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Ana Pellini, acredita que nenhuma das ocorrências representou perigo imediato ao ambiente ou à população a ponto de exigir medidas mais duras. Mas o ex-diretor técnico da Fepam Jackson Müller demonstra preocupação com as repetidas ocorrências:
– Há um número elevado de autuações da empresa, nove em apenas dois anos. Elas demonstram fragilidade das instalações autorizadas, com problemas de odores, lançamento de efluentes fora dos padrões, incêndio e lançamento de gás cloro. Esse gás é muito perigoso, podendo causar a morte.
O presidente da Agapan, Francisco Milanez, sustenta que a melhor saída seria substituir o processo de branqueamento do papel com base em derivados do cloro por sistemas alternativos que usam materiais menos perigosos, como ozônio – ainda que isso exija adaptações da planta industrial e resulte em um papel de tom mais amarelado. Em nome da CMPC, Zimmer afirma que todos os problemas que geraram foram corrigidos pela empresa "de forma rápida":
– Os impactos, em sua grande parte, não resultaram em danos, e a empresa apresentou defesas administrativas relativas a todas as autuações junto à Fepam.
A companhia responde por cerca de 4,5 mil empregos diretos e 25 mil indiretos. Estima-se que, nos cinco primeiros anos de funcionamento da nova planta, serão gerados R$ 713 milhões em salários, lucros e impostos por ano no Estado.
COMO ESTÁ HOJE
Após mudar de controle acionário por diversas vezes, a fábrica quadruplicou sua produção desde 2013, com investimentos de US$ 2,2 bilhões. Gera 4,5 mil empregos diretos e 25 mil indiretos. Investiu em diversas tecnologias para evitar impactos ambientais como cheiro, serragem e ruído. Porém, ainda recebeu nove autos de infração da Fepam nos últimos dois anos por inadequações.
IRREGULARIDADES
Autuações aplicadas pela Fepam à empresa nos últimos dois anos e a justificativa da CMPC para cada uma:
2015
9 de julho
Auto 827/2015
Irregularidade
Emissões de substâncias odoríferas (compostos reduzidos de enxofre) para fora dos limites da empresa, conforme denúncia recebida pelo Serviço de Emergência da Fepam confirmada pela CMPC Celulose por meio de e-mail recebido em 24 de junho.
O que diz a CMPC
"Foi decorrente da realização de uma solda em tubulação do sistema de coleta de odor, com emissão, durante três minutos, de composto de odor. Foi feita pela empresa fabricante deste sistema na fase de ajustes da partida da nova fábrica."
2015
23 de julho
Auto 903/2015
Irregularidade
Emissões de substâncias odoríferas (de uma conexão e de um tanque que rompeu e transbordou) para fora dos limites da empresa, conforme denúncia recebida pelo Serviço de Emergência da Fepam.
O que diz a CMPC
"Situação pontual de manutenção ocorrida na Fábrica 1, por imperícia do operador na intervenção da manutenção. Odor foi percebido fora da área da empresa durante curto espaço de tempo."
2015
5 de novembro
Auto 1.464/2015
Irregularidade
Autuada por descumprimento do "item 4.1.4 da licença de Operação n° 4671/2015-DL, por não atender ao padrão DQO" (Demanda Química de Oxigênio, indicador utilizado para avaliar a emissão de poluentes) para o lançamento de efluente.
O que diz a CMPC
Multa contestada, pois foi coletada, "juntamente, amostra de efluente para realização de análise no laboratório da CMPC, credenciado pela Fepam. O resultado da mesma amostra atendeu ao padrão, não observado qualquer impacto ambiental."
2016
23 de março
Auto 388/2016
Irregularidade
A empresa foi autuada por "descontrole no sistema de descarga do digestor, gerando a emissão de odor em descumprimento ao item 5.9 de sua licença de operação".
O que diz a CMPC
"Houve uma parada do digestor (equipamento envolvido na produção a celulose) e, por falha de sistema de controle, houve geração de odor que não foi possível de ser absorvido para tratamento, gerando uma rápida emissão com percepção externa com duração de cerca de cinco minutos."
2016
1º de abril
Auto 368/2016
Irregularidade
Causar poluição por "emissão atmosférica em decorrência da queima incompleta ocorrida no incêndio em leito de cabos elétricos internos na área da linha de fibras da Fábrica 1, gerando fumaça preta, atingindo áreas externas à empresa".
O que diz a CMPC
"Decorrente de incêndio ocorrido em 18/01/2016. Gerou fumaça preta como qualquer outro incêndio. Processo foi parado com segurança, e incêndio controlado em 30 minutos."
2016
4 de maio
Auto 477/2016
Irregularidade
Lançamento de "efluentes líquidos no solo sem tratamento proveniente da torre de resfriamento e lançamento de espuma fora dos limites da propriedade do empreendimento conforme denúncia de moradores, comprovado em vistoria realizada em 03/05/2016."
O que diz a CMPC
"Por excesso de produto de controle de incrustração na torre de resfriamento, foram emitidos flocos de espuma que voaram para fora do empreendimento, caindo alguns flocos na rua. Esta espuma não tem risco de intoxicação ou presença de produtos químicos do processo (...)".
2016
10 de maio
Auto 522/2016
Irregularidade
Emissões de "um volume presumido de 14 kg de gases clorados para o ambiente proveniente da planta química Guaíba 2, causando intoxicação a trabalhadores da empresa, conforme fiscalização realizada pela Fepam na data de 05/05/2016 e relato feito (...) pelo Setor de Vigilância em Saúde do Trabalhador, da Secretaria Municipal de Saúde e do setor de Emergência do Hospital Regional de Guaíba, confirmando a intoxicação dos trabalhadores da CMPC e descumprimento da Licença de Operação nº 8401/2015-DL, item 9.1, por não informar imediatamente a Fepam sobre o ocorrido.
O que diz a CMPC
"Não houve impacto ambiental. Foi a ocorrência de uma emergência na planta química com vazamento de dióxido de cloro que foi rapidamente debelada e controlada. Alguns operadores da área foram atingidos e encaminhados para atendimento preventivo para verificação. Não restaram impactos nem danos aos trabalhadores atingidos. Também situação pontual que foi melhorada à condição de eliminar este risco."
2016
19 de dezembro
Auto 1.409/2016
Irregularidade
A empresa foi autuada por lançar "efluente (licor negro) sem tratamento no Lago Guaíba e por descumprimento da condicionante 1.9 da Licença de Operação n° 05144/2016-DL" (o item 1.9 diz: "o empreendedor é responsável por manter condições operacionais adequadas, respondendo por quaisquer danos ao meio ambiente decorrentes da má operação do empreendimento).
O que diz a CMPC
"Foi devido a uma emergência com vazamento de efluente não tratado que atingiu uma galeria pluvial da fábrica, contaminando uma lagoa de passagem de água de chuva da fábrica que atingiu o Lago Guaíba. Ações foram rapidamente tomadas para mitigação dos danos, e o Guaíba foi monitorado, não tendo sido observados impactos na flora e na fauna do Lago. A empresa notificou a Fepam, que esteve presente na empresa e a autuou por lançamento de efluente sem tratamento. Entre ações para evitar situações futuras como esta, a empresa está investindo em melhorias na ordem de R$ 60 milhões."
2017
7 de abril
Auto 327/2017
Irregularidade
A empresa foi autuada por lançar "efluente (licor negro) sem tratamento no Lago Guaíba e por descumprimento da condicionante 1.9 da Licença de Operação n° 05144/2016-DL" (o item 1.9 diz: "o empreendedor é responsável por manter condições operacionais adequadas, respondendo por quaisquer danos ao meio ambiente decorrentes da má operação do empreendimento).
O que diz a CMPC
"Em vistoria da Fepam, a partir de relatório que havíamos entregue ao órgão mostrando este problema, foi-nos aplicada uma multa, mesmo depois de terem vistoriado a correção. Sem impacto para o meio ambiente."
Borregaard,
fábrica de mau cheiro
Em março de 1969, quando foi anunciada a construção da terceira maior indústria de celulose do mundo no município de Guaíba, os gaúchos exultaram com a promessa de empregos e desenvolvimento. O encantamento era tamanho que o governo brasileiro concedeu a Ordem do Cruzeiro do Sul a um dos diretores da companhia norueguesa Borregaard. Três anos depois, quando a fábrica entrou em operação, sua chaminé passou a exalar um odor tão forte de ovo podre, que chegava a provocar mal-estar e dores de cabeça. A população não sabia, mas o empreendimento nem sequer contava com alvará, e sua instalação à margem do Guaíba contrariava um parecer técnico que previra danos ao ambiente.
INSTALAÇÃO DA BORREGAARD
O QUE FOI
Implantação de fábrica de celulose na Região Metropolitana, às margens do Guaíba, em 1972, responsável pela propagação de mau cheiro e por despejos industriais no manancial.
ÁREAS ATINGIDAS
Conforme a força e a direção dos ventos, o cheiro ruim era sentido até em Butiá, a cerca de 60 quilômetros de distância.
CAUSAS
O impacto ambiental tinha principalmente três origens:
1) Cheiro:
o odor que deu fama negativa à Borregard era provocado pelo lançamento de gás sulfídrico das chaminés. Essa substância é caracterizada pelo cheiro semelhante ao de ovo podre e era citado como causa de dores de cabeça e enjôo entre a população afetada.
2) Despejos industriais:
eram lançados cerca de 600 quilos de resíduos por dia no Guaíba, como fibra de celulose, através de uma tubulação com 2,2 mil metros que chegava ao canal de navegação.
3) Serragem:
além de cheiro, o vento também espalhava pelas redondezas serragem produzida pelas máquinas que picotavam a madeira. Isso era causa de irritação nos olhos e nas vias respiratórias dos moradores de Guaíba.
DESIGN
Thais Longaray
EDIÇÃO
Luan Ott e Pedro Moreira
IMAGENS
Fernando Gomes
TEXTO
Marcelo Gonzatto
O QUE FOI
Implantação de fábrica de celulose na Região Metropolitana, às margens do Guaíba, em 1972, responsável pela propagação de mau cheiro e por despejos industriais no manancial.
ÁREAS ATINGIDAS
Conforme a força e a direção dos ventos, o cheiro ruim era sentido até em Butiá, a cerca de 60 quilômetros de distância.
Foto: SHIGUERU NAGASSAWA, BD
Foto: JUAN CARLOS GOMES, BD
Foto: AGÊNCIA RBS
Foto: AGÊNCIA RBS
Foto: SHIGUERU NAGASSAWA, BD
Foto: AGÊNCIA RBS
Fábrica foi comprada pela CMPC
e quadruplicou de tamanho
Fábrica foi comprada pela CMPC
e quadruplicou de tamanho
Fábrica foi comprada pela CMPC
e quadruplicou de tamanho
O casal Maurício e Marlene Nascimento observava, à época, a fábrica a distância