No instante em que escrevo esta crônica, volta a chover. Estou no décimo andar de um prédio em Porto Alegre, em um bairro afastado do lago Guaíba, que a gente chama de rio, e me sinto protegida, parece que nada poderá atingir minha família, a não ser o desabastecimento de água e luz, que não se compara ao que tantas outras famílias perderam. Ainda assim, a segurança é tênue, a consciência dessa tragédia nos encharca também, nós que assistimos o drama pela tevê e redes sociais. A nós, cabe esta lavagem a seco.
Parece tão insano. Trata-se de água, nosso bem mais necessário, fecundo, valioso, água que é sinônimo de vida. E, no entanto, ela se avoluma e invade ruas, entra pelas frestas das portas e janelas, se instala sobre o tapete da sala, encobre camas de casal, se esconde dentro dos armários, invade lojas e campos de futebol, atinge os telhados, arranca árvores do lugar, não tem piedade dos hospitais nem das livrarias, arrasta com ela os planos dos recém-casados, os berços de quem acabou de nascer, cães e gatos que não sabem para onde fugir. Devasta o passado, que foi nosso tempo de construção, e dá um caldo no futuro, que seria o tempo do usufruto. Caudalosa, nos induz a vencer a incredulidade e a desesperança, mas é um duelo injusto: por mais fortes e unidos que estejamos, no fundo da alma sabemos que não é um caso isolado, já aconteceu antes, acontecerá de novo.
A chuva não decide matar. Não resolve cair por quatro dias inteiros sobre a mesma cidade, não escolhe aquela encosta para desmoronar, aquela ponte para destruir. A chuva não pensa. Pensar é tarefa nossa.
A novidade dos desastres climáticos está em sua recorrência. Trocou-se o “de 10 em 10 anos” para o “a cada três meses”. Setembro, depois novembro, agora em maio. Essa foi a sequência recente de alagamentos no Rio Grande do Sul. Cada Estado tem seu próprio calendário de calamidades previstas pela meteorologia, hoje monitorada com mais precisão, só que precisão não evita o dano. O que evita é prevenção, realizada pelo governo, em escala ampla, e por cada cidadão, em atitude individual. Menos plástico, menos lixo nos mares, menos árvores cortadas, menos carros nas ruas: o manual de boas maneiras já é conhecido por todos, mas enquanto a ordem não vem de cima, continua tudo igual.
Negacionismo e acomodação só nos atrasam. A natureza está reagindo à nossa insensatez, não há mais tempo a perder. Cobremos medidas de quem tem a caneta na mão, a verba no cofre e o nosso voto – é ano de eleição. E façamos a parte que nos toca, mesmo que a ordem esteja demorando para vir de quem está hierarquicamente acima de nós, os donos do poder público. A ordem, na verdade, está vindo de alturas bem maiores. Vejo nuvens carregadas no horizonte.