Embaixador da Argentina na Áustria, Rafael Grossi esteve nos últimos anos nos principais palcos de discórdia internacional: vistoriou instalações nucleares na Coreia do Norte e participou de acirradas negociações com o Irã sobre seu programa atômico. É aposta de muitos para ser o futuro diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão máximo responsável por fiscalizar o uso pacífico desse tipo de energia.
Aos 57 anos, o diplomata nascido em Buenos Aires participou na terça-feira (21) do Seminário Internacional América do Sul na Era Nuclear: Riscos, Desafios e Perspectivas, promovido pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pela Pugwash Conferences on Science and World Affairs. Antes de desembarcar no Brasil, concedeu, de Viena, esta entrevista.
O tema nuclear é complexo, porque envolve questões estratégicas, como produção de energia e armas atômicas, e às vezes restrito a grandes potências. Como a América Latina se insere no debate?
Na América Latina, existem três países – México, Brasil e Argentina –, e especialmente dois, Brasil e Argentina, que têm capacidades nucleares pacíficas muito importantes e há anos. Eles têm todas as capacidades tecnológicas referentes ao ciclo do combustível nuclear e possuem centrais nucleares – no caso do Brasil, importantes instalações de enriquecimento de urânio.
Ou seja, são países que dominam toda a tecnologia, que pode ser usada tanto para a geração de energia quanto para questões militares. Isso faz com que o mundo preste atenção ao que acontece em nossa região. Brasileiros e argentinos, com o retorno de ambos países à democracia, nos anos 1980, decidiram percorrer juntos um caminho de confiança mútua. Criamos a Abacc (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), temos uma ciência binacional que colabora com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para um regime de inspeções mútuas. Nossos países não são grandes potências nucleares, mas têm essas capacidades. O que fazemos ou deixamos de fazer tem relevância nessa área de discussão.
O senhor costuma ressaltar a importância da cooperação internacional. Mas como ter confiança se nações como EUA, Reino Unido e França normalmente não aceitam assinar tratados de proibição de armas nucleares?
Existe cooperação em termos de uso pacífico de energia nuclear. O Brasil está terminando Angra 3 (veja quadro abaixo). Todas as atividades são feitas sob o marco muito importante da cooperação. A indústria nuclear, como todas as grandes indústrias, em especial as de alta sofisticação, requer apoio no fornecimento de peças, que vêm de diferentes países. Nenhuma indústria é autônoma. Há dezenas de milhares de peças e equipamentos importados. Outros são fabricados no Brasil e na Argentina, mas há uma grande quantidade que obedece à cooperação e ao intercâmbio de caráter comercial. O que você menciona é outra coisa. É a atitude de alguns países em relação à armas nucleares. E aí existem duas categorias: os países que possuem armas nucleares e os que não as têm. Existe, na política internacional, um grupo, basicamente os cinco membros do Conselho de Segurança das Organização das Nações Unidas (EUA, Rússia, França, Reino Unido e China), reconhecidos pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que tinham armas nucleares e que seguem tendo, ainda que com o compromisso de avançar gradualmente até o desarmamento.
O Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares não entrou em vigor. Este estipula a proibição completa (de armas nucleares) para todos. Obviamente, países possuidores de armas nucleares manifestaram sua rejeição a esse acordo, disseram: "Não, já somos membros do TNP, vamos seguir nos desarmando gradualmente, mas essa proibição abrupta, total, que estabelece o novo tratado, não aceitamos porque não corresponde à realidade do mundo onde existem armas nucleares". É um debate político, militar e estratégico diferente do outro, sobre energia nuclear e programas nucleares.
O senhor acredita que o Irã está cooperando com o acordo para limitar seu programa nuclear?
Aqui é preciso muito cuidado. O Irã está cumprindo efetivamente as disposições do acordo nuclear celebrado em 2015. A grande mudança é que os Estados Unidos se retiraram desse acordo. Mas o acordo não deixou de existir, segue vivo. O Irã está cumprindo com as disposições. O problema é que, para os EUA, esse é um tratado insatisfatório.
O senhor esteve em Teerã para participar daquela negociação. O mais difícil foi a falta de confiança entre os países?
Sim, estive muitas vezes em Teerã como encarregado dessa negociação. É preciso lembrar que o Irã, no passado, havia incorrido no descumprimento de seus compromissos no TNP, e foram descobertas instalações clandestinas (em seu território). Isso foi levado ao Conselho de Segurança da ONU, que ordenou ao Irã que negociasse.
Foi um longo processo, que durou quase 10 anos, até que se pudesse iniciar a negociação. Mas houve déficit de confiança no início. A negociação foi muito árdua e culminou nesse acordo firmado em 2015, que o Irã vem cumprindo.
Eles não têm uma bomba atômica. Têm muitas. Não sabemos exatamente quantas. A Coreia do Norte já é uma potência nuclear.
RAFAEL GROSSI
Embaixador da Argentina na Áustria
O senhor também esteve na Coreia do Norte. Qual a sua percepção? É possível confiar nesse início de negociação entre Kim Jong-un e Donald Trump?
Não há nenhum acordo até o momento. O que existe é uma manifestação mútua de se chegar a um acordo. Houve uma declaração entre os dois presidentes Kim (da Coreia do Sul) e Moon Jae-in (da Coreia do Norte), segundo a qual acertaram avançar rumo à desnuclearização total da península coreana. Depois, em Singapura, Donald Trump e Kim firmaram uma declaração curta, de quatro pontos, um dos quais indica que vai ocorrer uma negociação, mas cujos detalhes não sabemos nada.
A Coreia tem, de fato, a bomba atômica?
Eles não têm uma bomba atômica. Têm muitas. Não sabemos exatamente quantas. É importante lembrar que fizeram seis ensaios nucleares. Calcula-se que tenham um arsenal de entre 15 e 20 armas nucleares. A Coreia do Norte já é uma potência nuclear. Não há dúvidas.
Qual o risco de armas nucleares caírem nas mãos de grupos terroristas?
Existe sempre (o risco). Mais do que o perigo de que armas nucleares caiam nas mãos de terroristas, é o risco de material nuclear chegar aos terroristas: urânio enriquecido, plutônio, substâncias radioativas como as que existem em hospitais. Não para fazer armas nucleares, mas bombas sujas. O que os terroristas buscam é gerar terror e utilizar material nuclear.
Como está a segurança do material nuclear?
Há vários países nos quais a situação de segurança não está clara. Por isso, se insiste para que países garantam medidas de segurança e contenção. Há tratados, normas que os países devem cumprir para evitar que existam roubo e tráfico, contrabando de material nuclear, por parte de grupos criminosos, que possam traficar material nuclear para vender à rede Al-Qaeda ou ao Hezbollah.
Centrais nucleares sofreram acidentes, como o de Fukushima, no Japão, e de Chernobil, na antiga URSS. Como está a segurança dessas instalações mundo afora, em países como Índia e Paquistão, por exemplo?
A indústria nuclear teve três acidentes ao longo de 60 anos: primeiro nos EUA, em 1979, depois Chernobil, na ex-União Soviética, em 1986, e em Fukushima, no Japão, em 2011. O nível de segurança na indústria nuclear é bastante elevado. Toda a atividade industrial, petroleira, por exemplo, qualquer uma implica certos riscos. A indústria nuclear está muito regulada. Um dos objetivos da AIEA é garantir o cumprimento dessas regulações de segurança pelos países. Em geral, se cumpre de forma bastante positiva. As instalações nucleares são frequentemente visitadas por inspetores internacionais. Não existem países que operem centrais nucleares de forma isolada internacionalmente, com exceção da Coreia do Norte.
O senhor chegou a estar com Kim Jong-un na visita à Coreia do Norte?
Não, quando estive na Coreia do Norte, quem governava era seu pai (Kim Jong-il). Mas também não estive com ele, apenas com negociadores de seu governo.
O senhor acha que outras Hiroshima ou Nagasaki são possíveis ou estamos livres desse risco?
É uma pergunta muito difícil. As armas nucleares existem e, como existem, corre-se o risco de serem utilizadas. O que acho fundamental é reforçar o TNP e, quem sabe no futuro, o tratado de proibição de armas possa entrar em vigor. Mas, no momento, o único tratado (em nível global) que existe é o de não-proliferação. Também temos o Tratado de Tlatelolco, que proíbe as armas nucleares em nosso continente (América Latina e Caribe). Portanto, o que temos de fazer é garantir que, em cada uma das instâncias, os acordos sejam cumpridos e que as grandes potências cumpram com seu compromisso de avançar até o desarmamento. Se existem as armas nucleares, o risco (de serem usadas) existe. O que é necessário fazer é ser muito ativo em insistir no cumprimento desses compromissos. Se estamos completamente livres ou não, ninguém pode afirmar.
As armas nucleares existem e, como existem, corre-se o risco de serem utilizadas. Quem sabe no futuro o tratado de proibição de armas possa entrar em vigor.
RAFAEL GROSSI
Embaixador da Argentina na Áustria
A única coisa que podemos afirmar é que temos de tratar constantemente, com perseverança, de apoiar e fortalecer o regime internacional de desarmamento e de não-proliferação para que esse risco diminua.
O Brasil está produzindo o submarino com propulsão nuclear. A Argentina não tem equipamentos desse tipo. essa vantagem estratégica brasileira pode desequilibrar a balança de poder na América Latina?
Não acredito. O projeto do submarino nuclear brasileiro vem sendo desenvolvido de forma transparente. Não existe competição alguma entre Argentina e Brasil. São dois países que trabalham com muita cooperação. Não há cenário de corrida armamentista entre argentinos e brasileiros no século 21.
Em novembro passado, a rede de sensores para detectar testes nucleares da Agência internacional de energia atômica registrou uma movimentação que poderia indicar a explosão a bordo do submarino argentino ARA San Juan, que estava desaparecido no Atlântico Sul com 37 tripulantes a bordo. Como foi para o senhor, sendo argentino, receber esta informação em primeira mão?
Foi muito traumático. Eu me aproximei do organismo que faz a vigilância de testes nucleares, também sediado aqui, em Viena, porque conhecia a rede internacional de monitoramento sismológico que eles têm. Pensei que seria importante averiguar se, por meio das instalações de monitoramento, poderia haver alguma informação que pudesse ser utilizada por meu país. Evidentemente, houve, no dia 15 de novembro de 2017, a confirmação de um fenômeno singular e semelhante a uma explosão. Foi com imensa dor que recebi essa informação. Mas, ao mesmo tempo, devo reconhecer que foi importante obter essa informação porque permitiu descartar outras hipóteses e orientar as buscas internacionais de maneira mais eficaz. Ainda não foram encontrados os restos do submarino. Encontrar destroços de um submarino que provavelmente tenha explodido pode durar anos. Mas (a informação da explosão) deu uma certeza, ainda que tenha sido uma certeza triste.
Algumas pessoas questionam por que alguns países podem ter armas atômicas, como os EUA, e energia nuclear, como o Brasil, e o Irã não pode. É uma questão de desigualdade no sistema internacional?
Reatores nucleares são uma desigualdade econômica, não política. Qualquer país que tenha a capacidade financeira e tecnológica pode ter uma central nuclear. Nem todo país é capaz de ter infraestrutura científica, tecnológica e econômica para manter instalações muito complexas. Exige grande conhecimento, físicos nucleares, engenheiros, lamentavelmente existem países em desenvolvimento que não têm essa capacidade. É uma questão de desigualdade, sim, mas do ponto de vista econômico e tecnológico, mais do que político.
De tempos em tempos, o senhor é cotado para dirigir a AIEA. É um sonho?
Sim, temos essa aspiração. A AIEA é um dos poucos organismos internacionais que nunca teve um latino-americano como líder. Em 70 anos, houve africanos, asiáticos, europeus, norte-americanos. Como acontece em qualquer outra entidade internacional, nosso continente está capacitado para contribuir com a governança global. Há brilhantes brasileiros na Organização Mundial do Comércio (OMC), um brasileiro foi diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), José Graziano. A AIEA não deveria ser exceção. Argentina e Brasil deram um bonito exemplo de confiança mútua, de irmandade e cooperação. Portanto, esperamos que no futuro próximo tenhamos essa possibilidade. Mas apresentar minha candidatura é uma decisão que teria de ser tomada pelo governo argentino, e se isso ocorrer, trabalharemos muito próximos do Brasil.
Saiba mais
Matriz energética
A energia nuclear corresponde a 3% da matriz energética brasileira. O país dispõe de dois reatores (Angra 1 e Angra 2), que ficam na Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, em Angra dos Reis (Rio de Janeiro). A construção do terceiro reator (Angra 3), que seria concluída em 2018, só deve entrar em operação em 2024.
O Brasil e os tratados
O país é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) desde 18 de setembro de 1998. Uma cláusula inamovível da Constituição de 1988 determina que o país não terá – e caberá ao governo não permitir a presença em território nacional – artefatos atômicos de ataque. As decisões que levaram a essa posição foram tomadas depois de o Brasil ter o estratégico domínio teórico e prático de todo o ciclo do combustível nuclear, da extração ao enriquecimento do urânio.
Normas mais rígidas
Um acordo global, o Tratado de Proibição das Armas Nucleares, foi aprovado por 122 países na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas em julho de 2017. Esse acerto tem como perspectiva a eliminação dos artefatos bélicos nucleares. Porém, sua efetividade encontra-se comprometida, uma vez que Estados Unidos, Reino Unido e França, três potências nucleares, declararam que "não participaram da negociação do tratado, e não pretendem assinar, ratificar ou fazer parte dele". O Brasil é um dos signatários.