Vinte e sete de setembro é o Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos. Uma data para reforçar a importância deste ato e rememorar histórias marcantes envolvendo doadores e transplantados. Foi o sofrimento do irmão que fez com que a médica Melissa Barcellos Azevedo doasse um pedaço de seu fígado. Ao salvar o sobrinho Thales, ela não só estancou a dor de Marcel e Isabel, pais do menino, como experimentou uma sensação inédita e inexplicável.
— Nada se iguala à oportunidade de fazer isso. E olha que, como médica, já salvei vidas. Não sei se essa era a minha missão, porque minha paixão é cuidar das pessoas. Mas Deus trouxe isso para nós — reflete.
As complicações de Thales eram decorrentes do tratamento de uma cardiopatia descoberta quando tinha seis meses de vida, em outubro de 2019. Ele teve de passar por cirurgias, sedação e uma série de procedimentos, como diálise e o uso de Oxigenação por Membrana Extracorpórea (ECMO), que substitui o funcionamento do coração ou do pulmão quando não estão correspondendo.
Toda essa combinação deixou Thales enfraquecido. Meses depois de ter alta, acabou voltando ao hospital com deficiência no funcionamento do fígado, tendo o transplante indicado como única opção. Antes de Melissa receber essa oportunidade, foi o irmão, pai de Thales, quem passou por exames para verificar a viabilidade. No entanto, uma incompatibilidade verificada já nos últimos testes trouxe o desespero de volta. Ao vê-lo naquela situação, ela não pensou duas vezes.
Quando soube que minha irmã faria a doação foi um alívio, pelo Thales, e uma gratidão eterna, junto com a preocupação para que não ocorresse nenhuma intercorrência com ela.
MARCEL
Pai de Thales
A doação de órgãos é acompanhada por equipes multidisciplinares que se engajam em cobrir todas as possibilidades de erro – da rejeição do órgão, ao arrependimento posterior de quem doa em vida. Depois de refletir e conversar com amigos e psicólogos da equipe responsável pelo procedimento, foi a vez de Melissa passar pelos exames e, confirmada a compatibilidade, entrar no bloco cirúrgico, já em 2020, na condição de paciente.
— Não é como a gente vê em novela e filme, que a pessoa vai e já sai faceira do hospital. Tem uma série de decisões, questões burocráticas, leis e critérios. Toda uma proteção para quem doa e quem recebe — ressalta.
Algumas semanas depois da cirurgia, a equipe médica verificou que o procedimento havia sido um sucesso. Com o funcionamento do fígado retomado, Thales pôde, enfim, curtir seus pais e seu irmão três anos mais velho, Heitor. Hoje, aos cinco anos, frequenta a escola e se empenha para recuperar o tempo dedicado ao tratamento, quando algumas fases de seu desenvolvimento foram prejudicadas.
— Ao mesmo tempo em que segui minha vida normalmente, não tenho como não pensar que sou uma pessoa diferente agora. Ser um doador vivo não é muito comum, ainda mais quando não se trata de um filho.
Doações não são suficientes
Para se ter uma ideia, no Brasil, das 4.579 doações de órgãos feitas entre janeiro e junho de 2024, 538 envolveram doadores vivos. Destas, 83 foram de fígado – e as demais, de rim. As doações de tecidos, no mesmo período, somaram 8.260 procedimentos, todos de córnea. Já a medula óssea teve 1.613 casos. Os dados são do Registro Brasileiro de Transplantes (RBT), publicado pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO).
Esses números, aliados à qualidade do serviço prestado e dos resultados, colocam o Brasil entre os principais centros do mundo quando o assunto é a doação de órgãos. E o país pode melhorar.
— Temos um dos maiores programas do mundo, com resultados comparáveis a centros americanos e europeus, mas, mesmo assim, ainda temos um número significativo de mortos na lista de espera — alerta o chefe de Serviço de Transplantes do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Marcelo Hartmann, médico cooperado da Unimed Porto Alegre.
Isso acontece porque o número de pessoas que entram na fila é desproporcional em relação à quantidade de doadores, mesmo com o aumento da oferta. Em junho deste ano, o registro da ABTO apontou 64.265 pacientes adultos e 1.284 pediátricos em espera. Enquanto isso, a principal causa de não concretização da doação de órgãos é a simples recusa da família, constatada em 45% dos potenciais doadores notificados entre janeiro e junho de 2024 no Brasil. Aqui no Estado, o índice apurado foi de 46%, segundo o mesmo relatório.
Conscientização
O aumento no número de doações passa por uma quebra de alguns tabus. Hartmann observa que a questão cultural ainda é um impeditivo, envolvendo aspectos religiosos e tendo uma relação direta com o nível de escolaridade dos familiares. Por isso, é importante ter esse debate dentro de casa e expressar aos familiares o desejo de ser um doador – até porque a autodeclaração não tem qualquer serventia se não for atendida pela própria família.
O médico oftalmologista Juliano Pretto, vice-presidente da Sociedade de Oftalmologia do Rio Grande do Sul e médico cooperado da Unimed Porto Alegre, destaca a importância de lembrar que o sistema brasileiro de transplantes não apenas é um dos maiores do mundo, mas que tem esse reconhecimento pela capacidade técnica de que dispõe.
— A principal barreira acaba sendo sempre a doação. Um dos mitos é o de que apenas quem tem morte encefálica pode ser doador, já que isso não se aplica no caso da doação de tecidos. Qualquer morto, se não tiver contraindicações, pode doá-los — explica Pretto.
Entre essas doações estão tendões, músculos e pele. O médico dá o exemplo de uma morte por parada cardiorrespiratória, em que os tecidos podem ser conservados por algumas horas. Já a córnea, em alguns casos, pode ser preservada por até duas semanas.
Critérios técnicos e clínicos
Outro mito que prejudica as doações é a crença de que haja algum tipo de favorecimento no sistema. A Lei 9.434/1997 versa sobre o tema e protege tanto o doador quanto quem recebe, exigindo uma série de critérios técnicos e clínicos para a definição de quando pode haver a doação e, principalmente, qual seu destino.
— Existe uma fantasia de que possa existir algum tipo de manipulação, como se fosse acelerar a morte do paciente para que possa ser doador. Existem critérios muito específicos para uma morte encefálica, aplicados por uma equipe multidisciplinar, com etapas de validação. Só então se passa para uma conversa com a família — explica Pretto.
Segundo o oftalmologista, não existe maneira de algum médico ou outro profissional beneficiar algum paciente ou familiar, já que é um sistema muito bem estabelecido e controlado. Nas situações em que um paciente não segue a fila é porque o ordenamento obedece a outros critérios preestabelecidos.
— Se (uma pessoa) chega ao hospital com um olho perfurado, por exemplo, não necessariamente fica em fila de espera. Há uma priorização, por critério clínico. E, mesmo assim, a córnea que estava doente é analisada depois, para atestar que realmente estava danificada e justificar ter passado na fila — detalha.
Recompensa não é objetivo
O médico hematologista Dani Laks, cooperado da Unimed Porto Alegre, observa que, de forma geral, o brasileiro tem a característica de ser bastante solidário. Esse elevado grau de conscientização faz com que, quanto mais as pessoas souberem da necessidade, da lisura e do índice de sucesso dos procedimentos, mais doações sejam efetivadas.
— Quando a pessoa chega a doar é a felicidade que tem de fazer um gesto para alguém que ela nem conhece. No caso da medula óssea, por exemplo, às vezes nem vai ser utilizada no Brasil, mas alguém vai estar sendo salvo. Isso é algo que ela vai levar para o resto da vida — acredita Laks.
O testemunho de Melissa confirma essa tese. Depois de ver tudo que o sobrinho precisou enfrentar, não se dá ao direito de reclamar de determinadas coisas.
— A minha maneira de pensar mudou, sob muitos aspectos. De encarar a vida, inclusive. É uma criança que ainda não tem consciência de adulto, mas é o legítimo instinto de sobrevivência atuando — observa.
O trabalho de diversos profissionais da saúde, a união da família, a conscientização, a vontade de viver e uma parte do fígado da Melissa foram os ingredientes para que Thales continuasse a distribuir sorrisos por todos os lugares onde passa.
Caminho para receber um órgão
Muita coisa precisa ocorrer até que um órgão seja doado. Equipes são mobilizadas e famílias, sensibilizadas. Entenda, em alguns passos, como isso é feito:
- Morte de um paciente – Para doação de órgãos é necessária a morte encefálica, que é atestada por um rígido protocolo. Já para a doação de tecidos, um paciente morto em parada cardíaca sem contraindicações pode ser doador, respeitando o mesmo trâmite de autorização familiar e demais passos
- Conversa com a família – O passo seguinte é conversar com a família, que precisa autorizar, mesmo que tenha havido uma manifestação do doador morto, no sentido de doar. Equipes especializadas, com psicólogos e outros profissionais, são treinadas para fazer isso da forma mais humanizada possível
- Condição clínica – A avaliação para habilitar a doação é feita pela equipe de captação, que levanta a ficha do paciente, procura infecções ou contraindicações
- Mobilização das equipes – Neste momento, atuam tanto os profissionais que fazem a retirada quanto os que implantam cada órgão, de acordo com sua especialidade. Enquanto isso, uma equipe também entra em contato com o paciente indicado para receber o órgão ou tecido. Tudo precisa ser feito com a maior celeridade possível
- Coleta do órgão – As equipes responsáveis por cada órgão fazem a retirada, de forma que o corpo seja entregue para a família sem sinais aparentes, permitindo que a despedida, de acordo com cada cultura ou religião, transcorra sem qualquer diferença – este é outro mito que prejudica possíveis doações
- Preparação – Na outra ponta, o paciente que vai receber o órgão ou tecido já está sendo preparado para isso. São feitos exames complementares e atestada a capacidade de passar pelo procedimento, além da compatibilidade
- Transplante – É no bloco cirúrgico que esses dois elos se unem. O órgão ou tecido é finalmente implantado no paciente, que nas semanas seguintes tem a atenção voltada à “pega”, ou seja, à entrada em funcionamento daquele novo órgão ou tecido em conjunto com seu organismo
- Doador vivo – Nestes casos, doador e receptor passam por exames que atestam a compatibilidade e as condições para que sejam submetidos ao procedimento. Eles são levados juntos para o bloco cirúrgico, cada um com sua equipe: uma é responsável pela coleta e outra, imediatamente, faz a implantação. Foi o que ocorreu com Melissa e Thales, ouvidos pela reportagem
* Produção: Padrinho Conteúdo