Quando os familiares da professora aposentada Beatriz Maria Pietta, 72 anos, velaram e sepultaram a moradora de Muçum vitimada pela inundação do Rio Taquari, poucos dias depois da cheia devastadora de setembro, pensaram que essa etapa da tragédia estava superada. Passados quatro meses desde que chuvas torrenciais assolaram o vale, remoem duas perguntas em meio à tentativa de retomar os afazeres diários: quem, na verdade, velaram por longas horas e onde está de fato Beatriz Pietta?
A identidade da vítima havia sido confirmada inicialmente pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) com base em um exame de impressão digital. Além disso, a idosa havia sido reconhecida por familiares ao lado de outros dois parentes que morreram na mesma casa: seu marido, Alvaro Pietta, 75 anos, e o filho Macximiliano Ricardo Pietta, 46. Os corpos foram liberados para serem velados e enterrados — o que foi feito. Poucos dias depois do sepultamento, porém, um novo contato do IGP deixou todos atônitos: o corpo do qual haviam se despedido em um caixão fechado, na realidade, era de outra pessoa e não de Beatriz.
— Reconheci o corpo da minha irmã, do meu cunhado e do meu sobrinho. Para minha surpresa, poucos dias depois, o pessoal do IGP disse que tinha exumado o corpo e levado para uma nova perícia. O resultado foi que se tratava de uma outra pessoa, mas jamais nos disseram quem — afirma o irmão de Beatriz Valcenor Fleck, 74 anos.
Como o IGP alega que não pode fornecer a nova identidade do corpo (leia nota abaixo), a família está movendo uma ação judicial para obter mais esclarecimentos.
— Acreditamos que uma das possibilidades é que o corpo tenha sido corretamente identificado, já que três familiares fizeram o reconhecimento, e tenha sido trocado por engano depois — conta o sobrinho Luiz Paulo Pietta, representante comercial de 60 anos.
A esposa de Luiz Paulo, a educadora infantil Ivani Pietta, 57 anos, conta que o casal de idosos e o filho haviam se mudado para a casa onde acabaram morrendo, alguns anos atrás, justamente para tentar fugir das cheias do Taquari.
— Eles moravam mais perto da margem. Decidiram se mudar para um local mais distante para fugir do rio, e o rio veio até aqui pegar todos eles — lamenta Ivani, caminhando pelo que sobrou a residência de material.
Os familiares acreditam que o trio ficou preso dentro de casa porque, quando a estrutura foi construída, não se previu um alçapão que permitisse alcançar o forro ou o telhado. Assim, quando a água subiu a ponto de impedir que saíssem pela porta ou por uma janela, teriam se colocado involuntariamente em uma armadilha.
Um dos objetivos da família é conseguir, mesmo que seja por via judicial, descobrir que fim levou o corpo da professora aposentada e um documento que facilite a partilha dos bens deixados pelos Pietta. Além da aposentada, outras quatro pessoas permanecem sendo buscadas pelo Corpo de Bombeiros no leito e nas margens do Rio Taquari.
O que diz o IGP
O Instituto-Geral de Perícias se manifestou por meio de nota:
"Não passamos a identidade das vitimas identificadas, mas não há possibilidade de engano, pois a vítima foi identificada por exame de DNA de familiares. Em um primeiro momento, a vítima foi identificada por papiloscopia (impressão digital). O protocolo de atuação em desastres prevê uma revisão dos laudos, quando foi verificado que a impressão digital era inconclusiva, o que levou a exumação da vitima. Foi então feito exame de DNA, que resultou na identificação correta."
Coveiro de Muçum hoje desenterra corpos em vez de sepultá-los
Quem passa pelo cemitério municipal semidestruído de Muçum, no Vale do Taquari, costuma encontrar uma única alma viva circulando entre pedaços de túmulos, galhos e troncos de árvores arrastados pela água, além de montes de barro acumulado. Trata-se do coveiro Alcides Liberato Pereira, 70 anos, que há pouco mais de duas décadas se dedica a sepultar os mortos do município de 4,6 mil habitantes.
Nos últimos meses, porém, depois de enchentes devastarem o local em setembro e novembro, o serviço de Pereira se inverteu: em vez de colocar os falecidos de Muçum em covas ou gavetas, sua tarefa é retirar os mortos e devolvê-los para os familiares.
— Depois da segunda enchente, não tem mais condição de enterrar ninguém aqui. Hoje, o que eu faço é tirar quem estava sepultado para a família cremar ou enterrar em outro lugar. Quase todo dia, tiro uma ou duas pessoas — afirma o antigo coveiro.
Pereira calcula já ter removido cerca de 50 corpos do cemitério, entre eles o que se acreditava ser da professora aposentada Beatriz Pietta, 72 anos, que chegou a ser reconhecida pelos familiares e identificada preliminarmente pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP), mas depois de um exame de DNA se descobriu ser de outra pessoa. Alguns familiares também pedem para ele limpar algum túmulo ou capela, mesmo que o local tenha se tornado inviável para continuar recebendo mortos ou visitantes.
O local abriga ainda uma dezena de sacos com restos de ossadas que foram misturadas durante a cheia do rio. Enquanto não são identificadas ou removidas para outro local, permanecem no interior de uma urna vazia em um dos pontos do cemitério menos afetados pelas inundações.
Os desaparecidos
- Alexandre Eduardo Macedo de Assis, 48 anos, de Arroio do Meio
- Beatriz Maria Pietta, 72 anos, de Muçum
- Carlos André Pereira, idade não informada, de Lajeado
- Deiser Cristiane Vidal, 32 anos, de Roca Sales
- Deoclydes José Zilio, 94 anos, de Muçum