Publicado em 25 de abril de 2015.
A
caminhonete avança em meio ao amontoado de carros movidos a gasolina barata no trânsito caótico do bairro Los Palos Grandes. O céu é de um azul já escuro em Caracas no final da tarde de terça-feira, 14 de abril. As luzes dos prédios começam a se acender. Nos muros, xingamentos aos oposicionistas Henrique Capriles, chamado de “corrupto”, e Leopoldo López, “golpista”, e também ao presidente Nicolás Maduro, “ditador” e “assassino”. Da emissora de rádio, é a voz de Maduro que surge, mimetizando timbre e pausas do mentor, o ex-presidente Hugo Chávez, e vomitando ofensas contra “imperialistas” americanos e “apátridas” da oposição. Quando se muda para a emissora AM 750, a única crítica ao governo, péssimo sinal: apenas ruídos.
Na penumbra que divide o dia e a noite, percebem-se grafiteiros se esgueirando pelas ruas, em uma disputa por consciências. O tom político é permanente. Mais tarde, na emissora Globovisión, convertida ao governismo, Maduro grita vitupérios contra aqueles que diz se venderem para “comprar luxuosas casas em Miami”.
E assim segue a Venezuela: na penumbra, conturbada pela intransigência. Passados dois anos da contestada vitória de Maduro sobre Henrique Capriles, o país parece em clima eleitoral. Avizinha-se a eleição para o Legislativo unicameral, e, em um ano, será possível pedir o referendo revogatório da metade do mandato presidencial. As últimas eleições presidenciais ocorreram em abril de 2013, dias após a morte de Hugo Chávez, inspirador do “bolivarianismo”. Desde então, o país parece estar em uma encruzilhada, tal qual a visão dos prédios altos e modernos tendo ao fundo morros apinhados de casebres. Há inflação de quase 70% anuais, escassez superior a um terço da cesta básica, violência, pobreza roçando os 50% da população e ameaças de golpe da oposição ou do chavismo sob o pretexto de que o outro pretendia fazer o mesmo.
Seguindo ainda no fim de tarde caraquenho, pode-se ver a frase “Querer vida melhor não é pecado”. E por que seria? A frase ganha sentido na Praça Altamira. Fotografias de mortos em protestos contra o governo à direita e presos políticos à esquerda são alvo de alta devoção. Entre as duas fileiras de fotos, um obelisco e a imagem da Virgem de Coromoto, padroeira da Venezuela. As pessoas se aproximam e comentam: “Que horror”, “Que lástima”. Alguém saca a máquina fotográfica para registrar imagem tão comovente.
– Não faça isso – diz um.
– É perigoso – alerta outro.
É o espírito solidário caraquenho. Olhares recomendam juízo. A ousadia de fotografar é perigosa – ou pela presença de governistas, ou pela insegurança pública. Há desconfiança no ar.
– Nosso país parece estar sempre sob confronto e em crise. Quando encontro um produto que procuro, está caro – comenta Rosa, mulher de cabelos grisalhos e olhar triste.
Um homem calvo, de gravata e terno amarrotado se aproxima e comenta:
– Sou Gustavo Crocker Romero. Meu escritório de advocacia tirou 182 jovens da prisão, todos presos políticos. Muitos saíram com problemas emocionais e fazem terapia.
O desabastecimento é queixa generalizada. A repressão, queixa de alguns.
– Olhamos essas pessoas mortas e presas e pensamos: não se pode reclamar? Com as gôndolas vazias, não temos como alimentar os filhos – diz Ignacio Ortiz, zelador de um prédio.
Faltam produtos como fralda, papel higiênico, xampu, azeite, açúcar, cereais, frango, carne bovina, leite, maionese, medicamentos em geral e cosméticos em particular. Quando algo surge, funciona o boca-a-boca.
– Tem maionese. Venha antes que termine – anuncia alguém pelo celular.
– Mãe, achei maionese! – grita outro, também no celular, vibrando.
Em frente ao prédio onde fica uma entidade de direitos humanos, marcas no piso lembram estudantes presos durante manifestação
O
utro efeito do aparecimento de mercadorias raras: o bachaquero (palavra derivada de bachaco, formiga que leva plantas às costas), atividade forjada pelo desabastecimento. Falsificam cédulas de identidade e se enchem de mercadorias para vender a preços exorbitantes. É o atravessador – mas à custa da necessidade alheia. E por que falsificam identidades? Porque, para evitar as longas filas que acusam a escassez, o governo estabeleceu um calendário rotativo de compras. Tendo como referência o último dígito da carteira de identidade, o cliente pode comprar na segunda-feira se seu número é zero ou um. Na terça, dois ou três. Na quarta, quatro ou cinco. Na quinta, seis ou sete. Na sexta, oito ou nove. No sábado, zero, um, dois, três ou quatro. No domingo, cinco, seis, sete, oito ou nove. Cada um tem dois dias para compras. Tem gente que terceiriza a presença na fila. A maioria, para não faltar ao trabalho. Paga-se 10 vezes o valor do produto por esse serviço.
A poucas quadras da Praça Altamira, um mercado da rede Excelsior Gama tem poucas filas, mas há pouquíssimos produtos nas prateleiras.
Uma mulher vibra ao encontrar manteiga. Em seguida, protesta, aos gritos e sob o olhar dos seguranças:
– Ei, está vencida!
Desiste da compra, claro.
Três quadras depois, está um mercado maior da mesma rede, em frente à Praça Miranda. Pessoas vêm aos borbotões, expressão aflita, com pequenos pacotes levando produtos há muito cobiçados e telefonando para avisar alguém que tal produto chegou. Aparentemente, não há filas. Um homem vê a reportagem de Zero Hora e, num sussurro, olhando para os lados desconfiado, dá a dica:
– Vá até a garagem.
Por que não? Chegando lá, a constatação é aterradora: a fila, escondida do passeio público, dá voltas. Centenas de pessoas esperam pacientemente a hora de comprar. Uma mulher comenta, premendo os lábios, com raiva:
– Se não fosse o rodízio pelas cédulas, seria muito pior.
MERCADO
Para evitar longas filas, cada cidadão tem dois dias por semana para realizar compras
A
pesar da tensão, os caraquenhos mantêm resquícios de bom humor. Contam aos risos que os venezuelanos, sempre atentos aos atributos femininos, não olham mais as nádegas das mulheres que passam. Miram a sacola, para ver o que elas conseguiram comprar.
O calor supera os 30ºC e é atenuado por uma leve brisa que vem das montanhas. Ainda assim, é Caribe e, no estacionamento, não há brisa. O cheiro da gasolina exalada pelos utilitários é forte. Os caraquenhos suam, abanando-se com leques improvisados. Duas quadras depois do supermercado, as pessoas caminham a passo acelerado, passando pelo prédio de uma entidade de direitos humanos que tem, na calçada, desenhos representando jovens manifestantes retirados dali à força pela polícia.
Na quinta-feira, 16, o metrô está cheio. Na parte de fora, propagandas da revolução bolivariana e seus benefícios para a população. Na saída do bairro popular de Catia, pessoas caminham apressadas com suas sacolas levando um que outro produto. Logo adiante, uma dona de casa vai ao mercado e à farmácia. Leva uma lista, com dezenas de produtos. Só acha um cacho de bananas e carne bovina. Outra, recém saída de uma cirurgia, não encontra os medicamentos necessários para o pós-operatório.
Uma amiga ao lado comenta:
– Meu médico fez um kit e me deu, para eu me recuperar.
Outra diz que procura fralda geriátrica para um senhor de 94 anos. A vendedora afirma que fraldas geriátricas e descartáveis para bebês estão em falta.
– Seis de 10 venezuelanos se veem obrigados a entrar em longas filas para comprar produtos básicos. Os outros quatro pagam para alguém enfrentar essa fila por eles – diz o presidente da Aliança Nacional de Usuários e Consumidores (Anauco), Roberto León Parilli.
No limite de Catia fica o 23 de Enero, o bairro mais chavista de Caracas. Habitam-no pessoas de baixa renda. Nas paredes, pichações dizem “Maduro presidente” e “Com Maduro, o povo está seguro. O filho de Chávez!”
Na ferragem Archihiero, falta cimento. Perto dali, o açougueiro avisa um homem grisalho que não quer encarar a fila: se não aproveitar, não haverá mais carne. O homem resmunga e fica.
Atravessando a Avenida do Atlântico, filas se estendem pela quadra. Há leite em pó. As pessoas enfrentam o calor, pacientemente, para pôr dois quilos do produto na sacola e sair a passo acelerado. A empresa de laticínios Los Andes foi nacionalizada há sete anos por Chávez. As filas de dezenas de metros para comprar dois quilos de leite em pó passam sob um desenho do ex-presidente na parede.
O dia 17, sexta-feira, é um pouco mais fresco. Mas não nos quartos do hospital da Universidade Central, no bairro Los Chaguaramos. Pessoas se amontoam em camas precárias, lençóis puídos, sem ventilação, muito menos ar-condicionado nas paredes de pintura descascada em nítido sinal de abandono. Os alimentos colocados em cabeceiras são os que parentes levaram de casa para pacientes. Tenta-se não passar fome. Senhores de idade, com o olhar vazio dos desesperançados, miram a janela aberta, alheios ao mundo. Muitos deles solitários. Bolsas de soro são improvisadas. Uma mulher, percebendo a presença de jornalistas, comenta:
– Os medicamentos dos quais minha mãe precisa foram comprados fora. O médico nos deu a lista. E faltam vários.
SAÚDE PÚBLICA
Basta um centavo de dólar para encher o tanque. Mas comida e remédios são artigos de luxo
Mal sai do hospital, a reportagem depara, no mesmo bairro, com casas ribeirinhas – mas não em um rio. Estão às margens de um esgoto! O carro desliza por entre montanhas que separam a cidade do Mar do Caribe. Gasolina na reserva, hora de abastecer. Bastam 4,73 bolívares para encher o tanque, com 48,73 litros. É um centavo de dólar. Valor simbólico. Altamente simbólico para um país em que o petróleo é responsável por 96% das divisas, e a produção de bens essenciais, escassa. Onde se opera uma triste contradição: enche-se o tanque, mas comida e remédios são artigos de luxo.