Shelly-Ann Fraser-Pryce
Mamãe foguete
Leonardo Oliveira leonardo.oliveira@zerohora.com.brVocê que está se preparando para corujar nas Olimpíadas, guarde esse nome: Shelly-Ann Fraser-Pryce. Se não der para memorizar, anote. Porque essa jamaicana de 34 anos vai fazer história em Tóquio. Aliás, mais história. A vida de Shelly-Ann tem sido de quebrar recordes e superar barreiras. Mais do que isso, a vida dela é um exemplo de irresignação, de força e de que, sim, é possível avançar mesmo que as amarras do preconceito tentem te prender. Não é à toa que ela, hoje, é uma inspiração para uma geração de mulheres.
Shelly-Ann foi ouro nos 100m no atletismo em Pequim 2008 e Londres 2012. Na Rio 2016, ainda com resquícios de uma lesão, foi "só" bronze. Ela também é quatro vezes campeã mundial nos 100m, no que ultrapassou o compatriota e famosão Usain Bolt, tri mundial. Esse quarto ouro, aliás, é um capítulo à parte. Foi conquistado em Doha, em 2019, sua primeira competição dois anos depois de ter se afastado para ganhar Zayo. Portanto, a volta olímpica no Catar foi dada com o maior prêmio da vida nos braços. Quer mais? Aos 32 anos, Shelly-Ann se tornou a primeira mãe a ganhar os 100m no Mundial e ainda fez isso com seu melhor tempo, 10s71 (havia batido em 10s73, em 2009).
Como se não bastasse, agora em maio, depois de longo tempo apenas treinando por causa da pandemia, ela decidiu correr o Olympic Destiny Meeting, em sua Kingston. Foi sem compromisso e saiu de lá com 10s63. Ou seja, superou a barreira dos 10s6 e se tornou a mulher viva mais rápida do mundo, superando em um centésimo o tempo da norte-americana Carmelita Jeter, de 2009. O recorde dos 100m femininos ainda é o 10s49 da também norte-americana Florence Griffith-Joyner, registrado em Seul 1988. Vai levar tempo para que ele seja batido. No mundo do atletismo, ninguém crava que essa marca tenha sido alcançada sem ajuda de estimulantes. Flo Jo morreu 10 anos depois, devido a um ataque epilético que causou asfixia por uma almofada enquanto dormia.
Shelly-Ann, é bem possível, vai estar cuidando de sua vida em Kingston quando esse recorde cair. Da sua e de muitos outros jamaicanos que, como ela na infância, correm do destino. A velocista criou uma fundação, a Pocket Rocket (mais adiante, contarei a razão do nome). A missão da instituição é buscar bolsas de estudos para crianças carentes. Durante a pandemia, ela saiu em busca de doações de computadores e tablets para que as crianças não perdessem aula. Pela sua atividade social, virou embaixadora da Unicef.
Essa veia solidária vem de criança. Shelly-Ann cresceu criada apenas pela mãe em Waterhouse, uma das comunidades mais violentas de Kingston. Havia poucas saídas iluminadas para quem queria vencer na vida. Shelly-Ann gostava de correr na escola e viu ali um caminho. Essa junção de esporte e educação, podemos dizer, a salvou e a levou a ser uma estrela mundial. O melhor disso tudo é que ela manteve intacta sua essência. Tanto que se formou em Desenvolvimento Infantil e Adolescente. Na universidade, Shelly-Ann seguiu correndo. Pela Universidade Tecnológica de Kingston, bateu 11s31 em 2007 e foi quinta no campeonato nacional.
Mesmo que ela já fosse treinada por Stephen Francis, técnico que havia levado Asafa Powell a quatro recordes mundiais nos 100m, o mundo das pistas se perguntou quem era aquela atleta de 1m60cm que bateu em 10s78 e levou o ouro em Pequim 2008. A velocidade contrastava com a altura. Ainda mais se colocada ao lado de Bolt, que se apresentava de vez ao mundo naquelas Olimpíadas e era 30cm mais alto. Talvez tenha sido por isso que o narrador Hubert Lawrence, um Galvão Bueno da Jamaica, a tenha apelidado de Pocket Rocket (Foguete de bolso).
Shelly-Ann seguiu colecionando medalhas douradas. Porém, decidiu ir além. Usou sua força para quebrar barreiras, derrubar preconceitos e mostrar que, sim, é possível para uma mulher romper com os limites que uma sociedade ainda machista tenta impor. Seu exemplo é a prova disso.
– Porque muitas vezes, na minha vida, sempre me disseram o que posso fazer e o que não posso fazer e o que é possível para mim. E aqui estava eu, colocando tudo à prova, entendendo que não somos limitados. Somos muito mais, somos poderosos, somos fortes – disse em entrevista ao Olympic Channel depois do Mundial de Doha.
A última barreira derrubada por Shelly-Ann foi a de que, aos 30 anos, ser mãe inviabilizaria sua vida de atleta. Dois anos depois, ela ganhou o Mundial. Agora, está pronta para mostrar em Tóquio que uma mãe de 34 anos pode, sim, ser a mulher mais rápida do mundo. Portanto, prepare-se. Quando você, numa madrugada olímpica, ver na sua TV uma baixinha de cabelos coloridos correndo como uma bala, lembre-se desse nome: Shelly-Ann Fraser-Pryce, a mãe do Zayo, a esposa do Jason Pryce, a tetracampeã mundial, a bicampeã olímpica, a mulher poderosa que mostrou a todas as outras que ninguém pode dizer o que se pode ou não pode fazer.
Ah, e ela não atende mais por Pocket Rocket. Agora, é Mommy Rocket. Anote aí também.