Por dentro do gigante de aço

Estamos a nove metros acima do chão, sobre o cilindro de aço preto de 2,2 mil toneladas que repousa no alto da plataforma no interior do main hall, o gigantesco prédio do estaleiro, a poucos metros do mar, no complexo naval de Itaguaí, litoral sul do Rio. Daqui de cima, é possível observar toda a extensão do corpo do Riachuelo (SBR-1): da vante (como é chamada a proa) à ré (a popa) são 75 metros de comprimento, equivalente a 18 carros populares enfileirados.

— Vamos descer — alguém diz.

Mergulharemos no ventre do monstro de cor negra por uma das quatro escotilhas, logo atrás da vela, a parte mais alta da embarcação, semelhante a uma torre, por onde saem o snorkel e o periscópio. As "portas" do Riachuelo são os pontos mais visíveis das 160 "perfurações" do casco. Perfuração é o termo que os engenheiros navais usam para identificar pontos em potencial por onde a água pode entrar — além de escotilhas, porta de casco dos torpedos e outros locais sensíveis.

— A água está todo o tempo tentando entrar — lembra o capitão-de-corveta Edson do Vale Freitas, comandante do Riachuelo. — Nossa missão é evitar que ela entre.

Composta por 35 homens, a tripulação é treinada à exaustão para prevenir vazamentos e alagamentos. Simples fissura pode levar à tragédia: no caso dos submarinistas, conduzir a uma morte lenta, agonizante, como a que, imagina-se, acometeu os 44 marinheiros argentinos do ARA San Juan no ano passado.

— Qualquer emergência a bordo, a tripulação tem de reagir em prazo máximo de 30 segundos. Se a gente não conseguir, corre o risco de perder o submarino — acrescenta Vale, natural de Resende (RJ), submarinista há 14 anos.

Descemos ao interior da embarcação por uma escada quebra-peito de metal. Estamos no centro do submarino. O ambiente é gélido em razão do ar condicionado. No mar, a temperatura é mantida ainda mais baixa, em torno de 20°C, para evitar o aquecimento dos sistemas. Depois da água, o fogo é o maior risco a bordo.

Toneladas de estruturas metálicas lembram uma estação espacial. Os revestimentos ainda não foram instalados nas laterais. O Riachuelo está com as vísceras expostas: 1,2 milhão de fios, válvulas, tubos, mostradores e computadores.

Arraste a imagem para ver o submarino em 360º

Seguimos em direção à ré por um corredor principal, desviando de cabos pendentes do teto. Próximo à seção reservada aos alojamentos, divisórias em madeira, que acrescentarão algum conforto aos marinheiros, ainda não foram posicionadas. Certamente, depois de pronto, haverá menos espaço para deslocamentos. O Riachuelo será um labirinto.

O submarino brasileiro é praticamente idêntico a seu irmão francês da classe Scorpène. Mas foi modificado para atender à necessidade de patrulhar a extensa costa de 7,3 mil quilômetros, que exige maior autonomia da plataforma. Assim, os paióis de alimentos e combustível e as acomodações foram ampliados.

A três passos do local onde ficarão beliches e camarotes estão a cozinha e uma das praças d'armas, como é chamada a sala de confraternização e reuniões. Em navios de superfície, essas áreas costumam ser lugares espaçosos, com aparelhos de TV e sofás.

— Em um submarino, a praça d'armas tem o tamanho de uma mesa — explica o comandante.

Não é difícil imaginar quatro marinheiros tentando relaxar em um espaço exíguo como este, 200 metros abaixo da superfície. A essa profundidade, o cilindro de aço de seis metros de diâmetro que reveste a embarcação, a "pele" do monstro, recebe pressão de 206 quilos por metro quadrado.

Seres humanos confinados em naves desbravando os abismos submarinos expõem nossos mais obscuros medos. Claustrofobia é o que vem à mente aqui dentro. Em seguida, imagino um ataque de pânico. No ambiente confinado, tudo se propaga com rapidez: crises nervosas, vírus e odores de comida. Frituras, por exemplo, são evitadas no cardápio, bem como temperos fortes, como cebola e alho.

Submarino Riachuelo

1 - Capitão-de-corveta Edson do Vale Freitas, comandante do submarino Riachuelo

2 - Periscópio já está instalado na ponte de comando

3 - Primeiro tenente Adolfo Hoffmann é o único gaúcho a bordo

4 - Detalhe de uma das quatro escotilhas da embarcação

Nessa situação extrema, onde cada 10 metros para baixo representa uma atmosfera de compressão sobre a estrutura do submarino, até os momentos de descanso são dedicados ao estudo da embarcação e seus sistemas. Único gaúcho a bordo e o mais jovem tripulante do Riachuelo, o primeiro tenente Adolfo Hoffmann, 27 anos, fez seu batismo no submarino Tikuna (S-34) entre Montevidéu e o Rio de Janeiro. Foram 13 dias de imersão entre a capital uruguaia e Santos.

— A claridade do sol, depois desse tempo todo, ofusca. Mas, ali, me encontrei. Fiquei impressionado com o profissionalismo, com o sentimento de grupo da tripulação debaixo d'água — conta.

Não se desce às profundezas sem um ritual. Na cerimônia de batismo, o submarinista recebe o nome de um peixe — no caso de Hoffman, caranha. Durante o rito, o marinheiro é lembrado de que o fundo do mar não é lugar dos seres humanos:

— Traz a mensagem que a gente nunca esquece de que estamos embaixo d'água e que a água vai tentar entrar por todos os lugares do submarino. É um sentimento de respeito e, mais do que isso, de vigilância e atenção — explica.

Com graxa no rosto, os marinheiros de primeira viagem pedem o sal da sapiência e permissão a Netuno, deus dos mares, para adentrar em seu reino.

No Riachuelo, o colorado e porto-alegrense Hoffman, casado com Roberta e pai de um menino de 12 anos, Eric, e de uma menina de dois e meio, Helena, é o responsável pela eletricidade. Como oficial de águas, também trabalha no ajuste do peso do submarino, dentro da cota (como os submarinistas chamam a profundidade).

— Sempre tive apoio da família. Eventuais riscos são compensados pelo prazer na atividade e pela preparação que a gente tem.

E a rotina a bordo?

— Não tem celular? — pergunto.

— Não — diz.

— Não tem chimarrão?

— Não.

Então, como faz?

— A gente pratica bastante estudo. Está sempre atento. Submarino é local silencioso. Qualquer barulho anormal, a pessoa avisa antes para não causar nenhum transtorno, um alerta indevido — ele diz.

Hoffman não foge à regra do rosto bem barbeado de militar. Mas no caso de submarinista, nem sempre está assim. Durante os 70 dias que costuma durar uma patrulha no mar, água potável é artigo de luxo. É preciso economizar o líquido dos tanques, também usado para cozinhar. Sob ordem do comandante, o hábito de barbear pode ser suspenso. Com banho, a orientação é semelhante. Cada tripulante deve acelerar a higiene pessoal de modo a economizar água.

Motor a diesel exige subidas à superfície

Aqui dentro, mais ao fundo, estamos no coração do submarino: as baterias que movimentam o motor elétrico. De tempos em tempos, precisam ser recarregadas por meio de um motor a diesel acoplado a um gerador, que puxa o oxigênio da atmosfera. Se a embarcação está submersa, não é necessário emergir. Basta lançar até a superfície o snorkel. Como se fosse um grande aspirador de pó, a estrutura suga oxigênio para dentro do submarino. A profundidade a partir da qual o equipamento pode executar um snorkel é de cerca de 15 metros. Essa fundura vale também para o periscópio.

Embora um procedimento normal de qualquer submarino convencional, expor o snorkel acaba denunciando a presença da embarcação. Em tempos de guerra, é quando o aparelho fica vulnerável a inimigos. Pousado no fundo do mar, sem movimentar motor, o Riachuelo pode ficar até um dia sem trocar oxigênio. No caso do submarino nuclear, não há esta limitação, já que o reator nuclear pode mantê-lo indefinidamente debaixo d'água.

O motor diesel-elétrico

Submarino

Observo o relógio, passaram-se 10 minutos no interior do Riachuelo. Apesar do gelo do ar condicionado, o suor escorre pela testa. Tomamos a direção da proa. O capacete protege das batidas nos cabos pendurados no teto. Na maior parte do tempo, é possível caminhar em pé. Quando chegamos à vante (parte frontal), os seis tubos de lançamento de torpedos impressionam pelo tamanho.

A embarcação será equipada com os F-21, capazes de viajar a 50 nós (93km/h) e de ter o curso desviado no meio do caminho.

Um pouco atrás desta seção, fica a ponte de comando. Já acostumado com os espaços exíguos, estranho a área maior para deslocamento. Aqui está o cérebro do submarino: os controles que enchem os tanques para fazer a embarcação afundar ou os esvaziam para trazê-la de volta. No centro da sala, além da mesa tática está o periscópio, ícone dos submarinos desde que o holandês Cornelis Drebbel inventou esse tipo de embarcação, em 1620.

Sumbarinos não têm "janelas". É por meio do periscópio, semelhante a um telescópio, que gira 360 graus em seu eixo, que os olhos vigilantes do comandante Vale observarão a superfície: se chove ou faz sol, se há navios amigos ou inimigos lá em cima ou se a tão esperada terra, sempre celebrada por marinheiros saudosos de casa, está à vista. Nas laterais, a boreste (direita), ficam os sistemas de combate da embarcação, que movimentam os torpedos. A bombordo (esquerda), os controles que movem a nave. O timão, um joystick, como os de videogame dos anos 1980, cabe na palma da mão. Um movimento sensível faz mexer o leme e as 2 mil toneladas de aço, sistemas e seres humanos.

Voltar

Segue