rio de janeiro, rio grande, porto alegre. muitas cidades celebram suas águas.
a água dificilmente passa impune por uma cidade. eis um desafio para o futuro.

Se os mananciais soubessem da encrenca em que se metiam, tinham ficado de fora das zonas urbanas. Suas águas são desperdiçadas em vazamentos ao longo de quilômetros de canos, são despejadas em privadas para levar embora o que sobrou da janta de ontem e retornam, com todas as jantas de ontem, ao rio que, já sem oxigênio, empolga-se ao ver derramar-se sobre seu leito uma cascata de H2O límpida. Mas o entusiasmo dura pouco: era só o vizinho lavando a calçada com a mangueira.

 

O mundo de 2050, em que 70% da população viverá em cidades, consumirá 55% mais água do que atualmente. A maior parte da urbanização ocorrerá em países em desenvolvimento, justamente aonde a infraestrutura de saneamento leva mais tempo para chegar. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), universalizar saneamento básico e acesso a àgua potável deve ser prioridade nos países em urbanização. No Brasil, o Plano Nacional de Saneamento Básico prometia cumprir a meta até 2033, mas em 2013 apenas 39% dos esgotos brasileiros recebiam tratamento, segundo levantamento do Instituto Trata Brasil com base no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis).

 

– No Rio Grande do Sul, então, os números do saneamento são ridículos: 12,58% do esgoto é tratado – lamenta o biólogo Jackson Müller, professor da Unisinos e ex-diretor técnico da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam). – Dos 10 rios brasileiros mais poluídos, três, Gravataí, Sinos e Caí, estão na região metropolitana de Porto Alegre. Como vamos mudar isso? A partir da revisão desse modelo que está errado, em que captamos água limpa para nossas atividades cotidianas e devolvemos ela suja para a natureza – conclui.

 

No abastecimento, há muitas áreas desatendidas e muito desperdício. Em Porto Alegre, 24,6% da água é perdida na distribuição, em vazamentos e em ligações irregulares.

 

– A gente manda as pessoas economizarem água no banho, mas o cano da rua joga fora milhões de banhos. Coloca-se a culpa na população, mas os órgãos e companhias também têm de ser efetivos – queixa-se o engenheiro André Luiz Lopes da Silveira, diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS.

 

O problema, dizem os especialistas, é que o Brasil da abundância acostumou-se a tratar a água como recurso infinito – mas esqueceu que a água que sujamos hoje é a mesma de que precisaremos amanhã. Cidades sustentáveis são parte fundamental da solução para a crise da água. Metrópoles ideais atuarão mais como depuradoras e menos como poluidoras.

 

– Nova York teve iniciativa muito interessante na década de 1990, inspiradora para a situação atual, porque trabalhou em duas frentes. Em uma que foi redução de consumo (a prefeitura estimulou a instalação, por exemplo, de caixas de descarga 70% mais econômicas nas residências), e em outra que foi o cuidado com as áreas de manancial, das represas – exemplifica a urbanista e ambientalista Marussia Whately.

 

Criadas com uma década de diferença, a Agência Nacional das Águas, de 1997, e a Lei do Saneamento, de 2007, são o retrato de um despertar tardio do Brasil para suas águas. Em Porto Alegre, o Programa Integrado SocioAmbiental (Pisa) busca devolver a balneabilidade ao Guaíba até 2028, além de tratar 80% do esgoto na Capital. André Luiz Lopes da Silveira acredita que o Pisa precisará avançar, com mais integração entre órgãos e companhias ligadas a saneamento e ambiente – mas não é impossível.

 

– No rio Sena, em plena Paris, chegam a fazer praia artificial de areia pra curtir o sol. Por que não teria como fazer isso no Dilúvio? Arroio não é sinônimo de esgoto. No Brasil, infelizmente virou – lamenta Silveira.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

humanidade com fome,

mundo com sede

 

 

As projeções de um mundo mais urbano e populoso virão a reboque do desenvolvimento econômico – e desenvolvimento precisa de energia e de comida. Em 2025, é provável que dois terços da humanidade vivam em situação de estresse hídrico – quando a demanda por água é maior do que a recarga dos reservatórios. A maior parte do consumo de água e grande parte da poluição ocorrem fora dos domínios urbanos.

 

Protagonista nas hidrelétricas – que compõem cerca de 65% da matriz energética brasileira –, a água também é elemento resfriador nas termelétricas. As reservas de gás natural contidas em rocha, cuja exploração é o trunfo energético dos Estados Unidos para o século 21, também ameaçam a água. Grandes volumes de H2O, misturados a areia e produtos químicos, são utilizados para fraturar a rocha e extrair o gás. Muitas vezes, os reservatórios têm lençóis freáticos como vizinhos. Investir em fontes como eólica e solar alivia a pressão sobre os recursos hídricos.

 

Na agropecuária, responsável por cerca de 70% do consumo da água doce mundial, técnicas de irrigação mais econômicas, como o gotejamento, deverão se popularizar – sempre que possível, acompanhando o cultivo de variedades vegetais menos sedentas. Há especialistas que defendem a cobrança progressiva da água: não se mercantiliza um direito fundamental, mas quando se faz uso intensivo do recurso, cabe atribuir valor compatível com a importância e o impacto ambiental. No caso da indústria alimentícia, por exemplo, em vez do pagamento em dinheiro, pode ser exigida recuperação de vegetação em áreas onde a água é retirada.

 

Em junho, a presidente Dilma Rousseff anunciou compromisso de zerar o desmatamento ilegal e reflorestar

12 milhões de hectares de mata (meio Estado de São Paulo) até 2030. É o avanço tímido do país que, em 2012, aprovou um Código Florestal anistiando produtores rurais que tivessem desmatado leitos de rios e entornos de nascentes – fatores associados a contaminação da água, assoreamento de rios e degradação do solo. Especialistas são enfáticos ao alertar sobre os riscos de transigir com a degradação ambiental.

 

– Não há como barganhar com a natureza. Onde não há floresta, não há água. E não há incompatibilidade entre produção e conservação. Produtor agrícola que protege a floresta e cuida da água tem sucesso – garante o biólogo Jackson Müller.

 

Em linhas gerais, o futuro carece de cidades que reaproveitem a água para diferentes usos, saneamento básico universalizado, proteção dos ecossistemas naturais e planejamento integrado envolvendo governos e setores econômicos.

Seguindo essa receita, o Brasil poderá lidar com mais tranquilidade com o futuro da água, como país naturalmente privilegiado que é.

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