TRADIÇÃO GARANTIDA

Em qualquer estância nos confins do Rio Grande do Sul, diz-se que há sempre um mate fumegante à espera das visitas. Símbolo da afamada hospitalidade campeira, a regra pode não ter o mesmo peso nos centros urbanos, mas pesquisadores garantem que, apesar de todas as transformações sociais e tecnológicas em curso, tradições gaúchas como o consumo do chimarrão, o canto do Hino Riograndense e o uso da pilcha seguirão vivas pelas próximas décadas. E graças ao empenho dos mais jovens em preservá-las.

Assim como foram rapazes recém-chegados aos 20 anos que lançaram as bases do tradicionalismo, em 1947, um levantamento realizado este ano revela que, mais uma vez, é a juventude a principal linha de defesa dos costumes regionais. A pesquisa Persona - Quem São e o que Pensam os Gaúchos?, realizada por Grupo RBS e Consumoteca, mostra que 93% da população até 24 anos está determinada a transmitir os hábitos locais às futuras gerações — maior índice entre todas as faixas etárias investigadas.

 

Na média geral dos 1,8 mil entrevistados, 83% fazem questão de deixar como legado a seus descendentes pelo menos parte da cultura nativa a exemplo do mate e do churrasco. Engana-se quem acredita que esses dois ícones do gauchismo sempre fizeram parte do modo de vida nas cidades. Segundo Paixão Côrtes, um dos jovens que fundaram o tradicionalismo no fim da década de 1940, o chimarrão e a carne assada não eram paixões generalizadas até o final dos anos 1930.

 

— Não existiam churrascarias. O churrasco como degustação popular, pública, apareceu em 1935 na Exposição Rural do Centenário da Revolução Farroupilha, em Porto Alegre (...). Com o chimarrão, não se chegava nem à janela de casa — relembrou Côrtes, atualmente afastado da vida pública, em entrevista a Zero Hora em 2012.

marta e lucas,

em caxias do sul

Agora, por todo o Estado, multiplicam-se casos de amantes precoces dessas tradições como o estudante Lucas Webber de Lima, 14 anos, dispostos a garantir que elas jamais caiam no esquecimento outra vez. Morador de Caxias do Sul, na Serra, recentemente Webber recebeu um castigo comum em toda família com adolescentes em casa: foi obrigado a passar uma semana sem acesso ao telefone celular. O que seria um pesadelo para a maioria dos guris e das gurias da sua idade não teve o menor impacto sobre Lucas.

 

— Não fez diferença nenhuma pra mim. Não sinto falta de celular — conta o estudante.

 

Em vez de devotar horas e horas a redes sociais como Facebook ou WhatsApp, ou de esquecer do mundo jogando videogame, o adolescente passa seus dias distante dos apetrechos modernos.

 

— Eu nem tenho Facebook. A maioria dos meus colegas acha estranho, pergunta se eu não gosto de internet ou de jogar videogame. Não tenho videogame — garante Lucas.

FAMÍLIA LEVADA PELO FILHO AO CTG

Um verdadeiro castigo para o estudante de Caxias seria impedi-lo de ensaiar a coreografia de danças gauchescas, proibi-lo de alimentar as galinhas ou de ajudar na lida com as plantas e os bichos no sítio dos avós no distrito de Criúva. A paixão do adolescente pela cultura e pelos costumes campeiros chegou a contagiar o restante da família, que se aproximou do ambiente tradicionalista por sua influência.

 

— Ele começou a dançar em uma invernada por convite de alguns colegas do colégio, há alguns anos, e nós acabamos participando mais do tradicionalismo por causa dele — revela a mãe, Marta Webber Lima, 55 anos.

 

A família Webber é um exemplo de como os jovens, atraídos aos CTGs por grupos folclóricos que reúnem milhares de participantes por todo o Estado, estão forjando uma nova geração de cultuadores das tradições. As invernadas, como são chamados os grupos de danças típicas, participam de concursos e mobilizam famílias interessadas tanto em preservar costumes regionais como direcionar crianças e adolescentes para ambientes que consideram mais saudáveis.

 

— A invernada é uma coisa mais familiar, a gente sabe com quem ele convive. É muito melhor do que ir para a balada, mais seguro, e reforça o amor pelo Rio Grande — diz Marta.

 

Só a invernada juvenil do CTG Paixão Côrtes, ao qual Lucas é ligado, reúne cerca de 40 adolescentes, segundo Marta, e o grupo mirim, pelo menos outras duas dezenas de crianças. Se depender do estudante caxiense, os passos e rodopios dos bailados gauchescos deverão sobreviver, no mínimo, por mais uma geração além da sua.

Vou querer transmitir a cultura gaúcha para os meus filhos também.

Lucas Webber de Lima

Outro sinal perpetuação está nas práticas de quem vive longe do pago. Questionados sobre o que o gaúcho faz para não esquecer a terra natal quando mora fora, apenas 5% dos entrevistados responderam "nada". Para 64%, a principal medida é assar churrasco sempre que possível, para 53% é tomar chimarrão e para 34% é seguir falando gírias locais, do "tchê" ao "bem capaz".

 

— O que percebemos é que a nova geração tenta trazer para a tradição novos elementos. A tradição não está acabando — diagnostica Bruno Maletta, diretor da Consumoteca, empresa de Inovação e Pesquisa responsável pelo levantamento.

Os centros ligados ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) atuam como polos de propagação do gauchismo dentro e fora do Rio Grande do Sul. Atualmente, a direção do órgão contabiliza 1,7 mil entidades filiadas dentro do Estado — pelas quais se estima circularem um milhão de pessoas por ano —, outras 1,3 mil em outras partes do Brasil e duas dezenas mundo afora. O presidente do MTG, Nairo Callegaro, afirma que os jovens têm papel fundamental na preservação do regionalismo.

 

— O movimento começou com jovens, em 1947, aqueles jovens envelheceram, e agora estão vindo novas gerações para levar adiante esse trabalho — diz Callegaro.

 

O desejo de perpetuar a bagagem cultural é mais forte entre homens e mulheres que praticam o tradicionalismo no cotidiano, os "Gaúchos Fiéis", como foram batizados na pesquisa — 63% deles se dispõem a transmitir "todas as tradições", sem restrição. Mas o plano de deixar o gauchismo como herança não se limita aos pólos tradicionalistas ou a seus adeptos. Mesmo entre os riograndenses que não se sentem identificados com CTGs, avessos ao gauchismo e dispostos a migrar — os chamados "Gaúchos Desapegados" —, 55% admitem a intenção de passar pelo menos alguns costumes aos rebentos, em especial o gosto pela bebida amarga herdada dos antepassados e pela carne assada na brasa.

TRADIÇÃO DE PAI PARA FILHO

Você pretende passar ou passou as

tradições gaúchas para seus filhos?

As respostas à mesma pergunta de

acordo com os cinco perfis identificados

pela pesquisa

As respostas à mesma pergunta

de acordo com a faixa etária

Gaúcho fiel

Gaúcho raiz

Gaúcho não praticante

Gaúcho exportação

Gaúcho desapegado

18 a 24 anos

25 a 34 anos

35 a 44 anos

45 a 54 anos

55 anos ou mais

tatiane,

em pelotas

Eu adoro dançar na invernada e não pretendo parar. É quase um vício. Mas não abdico de outras coisas. Vou à balada como qualquer pessoa da minha idade e me preocupo com o papel das mulheres na sociedade

Endriele Silveira, estudante

A preocupação com a renovação aflora inclusive nos ambientes marcados pelo culto às origens, onde o dilema entre conservar velhos hábitos e evoluir é cada vez mais presente. Cozinheira do CTG Coronel Thomaz Luiz Osório, em Pelotas, Tatiane Mattos Silveira, 40 anos, vive a dicotomia entre o tradicional e o moderno dentro de casa. Suas duas filhas — Milene, 13 anos, e Endriele, 19 anos — integram grupos de danças da entidade e têm orgulho de incorporar a figura da prenda. Ao mesmo tempo, são adeptas do feminismo.

 

– O gaúcho é conservador, sim, mas está se adaptando aos novos tempos. Eu mesma aprendo muito com as gurias, todos os dias. Tenho orgulho de ter duas filhas feministas. As mulheres estão participando de forma cada vez mais ativa do movimento tradicionalista, e isso é bom – afirma Tatiane.

 

Estudante de Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Endriele Silveira considera a evolução positiva e acredita que mudanças do tipo são importantes para assegurar sobrevida ao tradicionalismo.

Com 49 anos de existência, o CTG Coronel Thomaz Luiz Osório tem 250 sócios e conta com mais de uma centena de dançarinos, a maioria crianças e adolescentes. Para atrair a gurizada, o patrão Marcio Adir Soares Correa, 48 anos, não titubeou: decidiu instalar internet sem fio nas dependências da entidade. A repercussão foi imediata.

 

– Fiz questão de botar Wi-Fi porque entendo que se não oferecermos atrativos para o jovem, a gente corre o risco de perdê-lo. Aqui é o único lugar onde conseguimos reunir, num mesmo ambiente, pais, filhos e avós. Isso não pode acabar – diz Correa.

 

Funcionária da Secretaria Municipal da Cultura em Pelotas, Adriana Oteiro, 43 anos, concorda com o marido e vai além, citando outras inovações adotadas na entidade, como o fim da exigência da pilcha em festas e a iniciativa de celebrar a importância do negro na história do Rio Grande do Sul. Quando o assunto é homofobia, Adriana garante que a orientação sexual "não tem relevância".

 

— A gente já está em outra vibe. Conseguimos quebrar barreiras por entender que certas coisas não cabem mais no movimento tradicionalista. Diziam que CTG era coisa de grosso, machista, racista. Eu quis mudar essa imagem. Aqui dentro, não vou perguntar se a pessoa é casada com homem ou com mulher. Eu vou querer que ela seja nossa sócia. Isso é o que vai garantir o nosso futuro — opina Adriana.

 

A questão financeira, segundo o patrão, é mais desafiadora do que qualquer outra:

 

— Manter um CTG custa caro, impõe uma série de responsabilidades e dá trabalho. É o que mais nos preocupa.

 

Na busca por ampliar o número de associados, o CTG decidiu ampliar os espaços para as mulheres. Uma das novidades foi a criação de um grupo exclusivo de cavaleiras, batizado de Joaquinas, que promove cavalgadas na Semana Farroupilha e chama atenção por onde passa. A atividade acabou se transformando em chamariz e motivo de orgulho.

 

— A gente tem de olhar para frente e avançar nas nossas ideias, mas sem pisar no nosso rastro, naquilo que nos foi deixado. Podemos até sofrer críticas do MTG, mas com eles a gente se entende. A verdade é que não dá para parar no tempo. Ninguém mais quer vir aqui só para dançar o pezinho — afirma Adriana.

 

A falta de interesse de alguns jovens pela tradição preocupa gente como o domador de cavalos Gilnei Pinto da Silva, 53 anos, que transparece na forma de se vestir e de falar a paixão por antigos hábitos. Morador de Pelotas, fã de Luiz Marenco e declamador de poemas nos quais exalta o amor à terra, Silva costuma organizar torneios de laço no bairro Areal, onde mantém uma propriedade rural. Segundo ele, é difícil atrair a gurizada para a atividade.

 

— Tem pouca renovação. A gente vê isso nos rodeios de vaca mecânica. No último que fizemos aqui, tinha só duas ou três crianças, e as de sempre. Às vezes até falta laçador. Tinha de haver mais incentivo. Acho que, com a internet, está se perdendo muita coisa. Tradição se aprende com os mais velhos, assim como um dia eu aprendi o que sei com o finado Chico Domador — afirma Silva, referindo-se a um velho amigo da região.

SEXISMO AINDA É FATOR DE AFASTAMENTO

Embora 51% dos entrevistados acreditem que nada ou quase nada mudou na imagem do gaúcho típico, 29% já detectam alterações. Para 14% dessa parcela, o antigo estereótipo já não combina com o novo retrato de quem nasce e vive no Rio Grande do Sul.

 

Apesar das transformações em andamento, a conotação sexista de certos aspectos da tradição ainda afasta potenciais adeptos. Em setembro deste ano, o empresário Claudio Alexandre da Silva Kohls, 43 anos, optou por não levar a filha de três anos à escolinha durante as comemorações farroupilhas por entender que era prematuro vesti-la de prenda e apresentá-la à cartilha tradicionalista. Morador de Porto Alegre, onde tem um bar, Kohls nunca frequentou CTGs. Embora goste de churrasco e chimarrão, a única bombacha no seu guarda-roupa — presenteada por um conhecido — é de origem uruguaia.

 

— Não sou contra as tradições gaúchas, mas me preocupa um pouco o machismo em algumas práticas e nas letras de certas músicas, ainda mais sendo pai de uma menina. Tenho amigos no meio, respeito muito quem gosta e sei que nem todos pensam assim, mas acho cedo para incutir isso na cabeça dela. Quero que ela tenha condições de decidir. No futuro, se ela quiser participar de CTGs, tudo bem. Não vou me opor — pondera o empresário.

claudio,

em porto alegre

Ainda que reconheça as divergências, a cantora Fátima Gimenez, famosa por entoar o Hino Riograndense em eventos, avalia que o movimento tradicionalista "está cada vez mais forte" e que a tendência é seguir assim daqui para frente.

 

Um dos exemplos da pujança do tradicionalismo, conforme a intérprete, é a popularidade alcançada por eventos como o Encontro de Arte e Tradições Gaúchas (Enart), que ganhou ares de megaespetáculo. Nos últimos anos, o evento passou a atrair multidões a Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, para a etapa final da competição de danças, protagonizada basicamente por jovens. Fátima cita mais indicativos de que o tradicionalismo vive um momento de expansão.

Há uma redescoberta da tradição e de que ela é bonita. Mas é claro que algumas pessoas no meio ainda são muito preconceituosas, e isso tem de mudar. É preciso abrir as mentes e caminhar para um mundo de mais igualdade e respeito.

Fátima Gimenez, cantora

Estudioso da identidade regional, o historiador José Augusto Fiorin concorda que o movimento tradicionalista "jamais vai acabar", mas faz uma ressalva: para que isso se concretize, será preciso perder "um pouco da característica doutrinária":

 

— Hoje, o MTG impõe toda uma carta de princípios a ser seguida, desde a largura da bombacha até o tamanho do lenço. A dúvida que fica é: será que aquela pessoa que quer se identificar como tradicionalista tem mesmo de usar a bombacha e o lenço dessa forma? A cultura não é mais ampla do que isso? Afinal de contas, gaúcho é só aquele que usa bota e espora ou é quem nasce no Rio Grande do Sul?

EXPEDIENTE

Reportagem: Juliana Bublitz e Marcelo Gonzatto

Imagens: Fernando Gomes e Omar Freitas

Design e infografia: Thais Longaray e Thais Muller

Edição de vídeos: Luan Ott

Edição digital: Rodrigo Müzell

A identidade, os costumes e os anseios de quem vive no RS, hoje e no futuro, são traçados neste grande levantamento encomendado pelo Grupo RBS à empresa Consumoteca. Com 1,8 mil entrevistados em todas as regiões do Estado, a pesquisa mostrou que o apego ao universo do Pampa não significa que o gaúcho tenha opiniões padronizadas. O estudo, detalhado em reportagens publicadas ao longo de três semanas neste especial digital, mostra cinco tipos de gaúcho, derruba mitos e aponta tendências.