SOBRE

AMORES

SEM

LIMITES

O BARULHO DA SANDÁLIA DE SALTO ECOA PELO CORREDOR. Em um passo nervoso, Daysi, 50 anos, caminha ao encontro de André, duas décadas mais jovem. Entre idas e vindas, o casal está junto há oito anos. Nos últimos dois, os momentos a sós têm tempo contado e se dão em um cenário não muito acolhedor: uma cela da galeria 3H do Presídio Central de Porto Alegre.

– Tu vais ver que eu já entro toda cheia de intimidade, agarrando ele – anuncia ela.

A chegada de Daysi, que nasceu Vladimir, interrompe brevemente a reunião semanal da Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, na capela do presídio. Já eram 60 dias sem contato. André, cumprindo pena por tráfico, havia se encantado por uma colega de galeria (a 3H é exclusiva para homossexuais e travestis) e descadastrado Daysi da lista de visitantes. Quando a nova namorada foi solta, ele pediu para que a antiga voltasse.

– E eu volto, porque o amor é sem-vergonha – resume Daysi.

Ao rever André, ela esquece a rejeição.

– Tu assinou os papéis do nosso casamento? – pergunta ao amado.

– Assinei.

– Então vamos casar?

– Vamos.

Os dois se abraçam, sem definir datas.

Oito anos atrás, André apareceu na casa de Daysi, no bairro Guajuviras, em Canoas. Expulso do lar pelos pais porque andava em más companhias e se envolvera em casos de roubos e furtos, estava à procura de um lugar para dormir. Um amigo indicou:

– Vai lá na casa do meu tio.

O “tio” que abriu a porta era uma pessoa alta, magra, de cabelos compridos e sorriso fácil. André vacilou por alguns segundos até identificá-la como “um homem que tinha jeito e nome de mulher”. Entrou. À época, Daysi tinha um companheiro sob o mesmo teto. Atraída quase que instantaneamente pelo hóspede, saltou da cama de madrugada para espiá-lo dormir. De manhã, pôs um fim no relacionamento de uma década. Estava decidida a conquistar André.

A primeira aproximação causou estranhamento no rapaz, que até então só havia namorado meninas.

– Eu não sei onde te tocar. Tu és um homem – disse a ela.

– Ao mesmo tempo que minha cabeça dizia que aquilo era esquisito, eu gostei dela, porque ela me acolheu. Era uma pessoa de família, caseira, que não gostava de “se aparecer” e nunca havia se prostituído – relata André.

Os dois estabeleceram uma relação de companheirismo, com o desafio de vencer o preconceito. André chegou a apanhar na rua, por “estar com uma bicha velha”. Não deu muita bola. Tanto a família dele como a de Daysi, apesar da antipatia inicial com a ideia, acabaram aceitando o romance. Até que André foi preso – vendia drogas para sustentar seu gosto por roupas, bonés e tênis descolados –  e as grades se impuseram entre o amor dos dois.

Com André privado de liberdade, cabe a Daysi mimar o namorado durante as visitas, que ocorrem às terças-feiras e aos sábados, das 7h às 17h.

No reencontro acompanhado pela reportagem, passado o afã da saudade, os olhos da cozinheira pousaram direto nos pés do detento:

– E essa meia encardida? Não foi a que eu te dei.

Para André, Daysi leva sabonete de marca, cremes hidratantes, amostra grátis de perfume – ele é vaidoso –, bat-gut de morango, bife, macarrão, chocolate, pudim, torta de bolacha – ele não gosta da comida servida no Central. Às vezes, arrisca-se até com itens proibidos: camarão, sazon, tempero em folha. É uma forma de comprar o amor, que, desde que a cadeia virou rotina, se tornou instável.

– Pra mim, é difícil. Eu fico insegura. Ele está aqui, cheio de meninas novas na galeria. E eu lá fora, cada vez mais velha – desabafa Daysi.

– Eu sofro de ciúmes. Estou com a cabeça lá na rua todo tempo, pensando em como ela está, se está com outra pessoa – diz André, que, nos dias de visita, capricha na higiene pessoal e se toma de ansiedade até vê-la chegar.

Aliás, os dois dizem que o sexo é secundário: gostam de ficar deitados, conversando, se beijando, perguntando como têm passado.

– Sempre fomos assim, é o que nos mantém juntos até hoje. Se der tempo, que bom; se não, é bom igual – julga ele.

Na despedida, Daysi ajoelha-se no chão, enlaça a cintura de André com os braços e beija seu umbigo. Nos dois meses de separação, ficou “doente do coração” – chegou a ser internada com um princípio de infarto. Agora, anima-se com a reconciliação e com a perspectiva de oficializar a união:

– Finalmente vou ter um sobrenome.

André é orientado a voltar para sua galeria. Daysi precisa ir embora. Os dois caminham juntos até onde é possível. Ele do lado de lá, ela do lado de cá. Uma grade no meio. Até que André some. E para Daysi só resta contar os dias.