o casamento tradicional

tem companhia. o futuro abre passagem para outras formas de amar, e o desejo manda avisar que não conhece modelos.

Idealizado como ato supremo da união amorosa, por séculos o matrimônio foi uma forma de famílias selarem acordos econômicos e políticos. Via de regra, cabia à filha mulher ser fiel ao homem que seu pai escolhesse. Casar por amor é uma novidade do século 19. O caminhar da civilização tratou de chutar as porteiras que cerceavam o amor. Legalizou-se o divórcio, criaram-se mecanismos de proteção à mulher ante a violência doméstica, reconheceu-se a paternidade socioafetiva, a união estável e a possibilidade de homossexuais casarem-se com os mesmos direitos de que dispõem os heterossexuais.

 

O futuro dos relacionamentos deverá ter arranjos cada vez mais diversos. O casamento tradicional é para muitos, mas não para todos. Em 2012, os matrimônios no país duravam, em média, dois anos a menos que em 2007, dados do IBGE. Uma pesquisa do escritório de advocacia britânico Irwin Mitchell do ano passado indicou que um em cada quatro casais no Reino Unido só está junto por conta dos filhos, e 40% dos casais com filhos não estão felizes com o relacionamento. Em contrapartida, três em cada quatro casais estão juntos porque querem, e 60% estão satisfeitos em suas relações.

 

Juíza em uma Vara da Família fluminense por

15 anos, Andréa Pachá assistiu a parte das mudanças que o casamento e as relações familiares sofreram desde os anos 1990, e registrou diversas situações que vivenciou em dois livros, A Vida não É Justa e Segredo de Justiça. Muitos relatos são reveladores de uma dificuldade comum nos matrimônios: a frustração ao descobrir que dividir a vida com o outro não era bem o que se imaginava. O que era amor vira disputa.

 

– Alguns valores que faziam parte do cardápio do amor romântico começam a ser colocados em xeque pela patrimonialização das relações. Muitas pessoas têm medo de namorar sem fazer um contrato formalizando o envolvimento patrimonial – afirma a juíza.

 

 

regras velhas, tabuleiro novo

 

 

– O grande conflito do ser humano, hoje, é entre desejo de simbiose, de ficar grudado com o outro, e o desejo de liberdade, que parece começar a predominar – afirma a escritora e psicanalista Regina Navarro Lins.

 

Defensora de relações abertas, Regina acredita que idealização do parceiro e excesso de regras tornam as relações opressoras. Historicamente permitida – e até estimulada – de forma velada aos homens, a poligamia cada vez mais aparece no consultório em um contexto de acordo mútuo entre as partes.

 

– O que observo de quatro anos para cá é que o maior desafio que vários casais encontram é uma das partes propor abertura da relação e a outra parte arrancar os cabelos – afirma a psicanalista.

 

Regina cita como sinal dessa liberalização a série Amores Livres, em exibição no canal por assinatura GNT, em que o diretor João Jardim espia a intimidade de relações que fogem à tradição monogâmica.

 

– Pode ser que, em 2050, meus bisnetos digam “tadinha da minha bisavó, tinha só um marido para tudo!”. É possível que as pessoas venham a ter vários parceiros. Um para viajar, um para programas culturais, outro mais para o sexo, e as pessoas olhem para a gente com piedade – especula Regina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexualidade binária em xeque

 

 

Nas décadas de 1940 e 1950, o zoólogo e sexólogo americano Alfred Kinsey incendiou o meio acadêmico ao demonstrar que a sexualidade humana não era binária, mas fluida. Kinsey, um defensor de que cada indivíduo era único em seu desejo, entrevistou mais de 10 mil pessoas e aferiu que os hábitos sexuais de homens e mulheres compunham um gradiente entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Nascia a Escala Kinsey. Em um estudo com 1,6 mil britânicos divulgado no mês passado, 23% dos entrevistados não se enquadraram no extremo hétero da escala. Entre os participantes com
18 a 24 anos, o índice foi de 49%.

 

Se esse é um fenômeno biológico ou comportamental, o que parece claro é que a sexualidade humana se revela mais vasta e complexa quando respira à luz do respeito e da liberdade. Até a década de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda definia a homossexualidade como patologia. Os passos significativos dados nas últimas duas décadas, culminando no reconhecimento do casamento civil gay, sopram novos ventos.

 

No Brasil que celebrou 3,7 mil uniões civis homossexuais só em 2013, quase 50% da população se opõe ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas o tema tem penetrado na cultura de massa, na teledramaturgia, no noticiário. Casais homossexuais constituem família, seja pelos mecanismos que lhes permitem gestar filhos próprios ou como pais adotivos, inclusive dando a crianças órfãs ou abandonadas a chance de crescer em um lar.

 

– Se os pais serão melhores ou piores ao desempenharem suas funções é algo totalmente independente do seu gênero e mesmo de quantos ocupam esses lugares. O que faz diferença, sim, é a presença ou não de amor em uma família – afirma a psicanalista Maria Cristina Poli, professora da UFRJ que também exerce atividade clínica no Rio de Janeiro.

 

Apesar de reconhecerem que o aceite social a outras configurações familiares, e mesmo à homossexualidade, ainda engatinha, os especialistas ouvidos por Rumo garantem que se trata de um caminho sem volta.

 

– Pega uma rosa que desabrocha e fala “volta para o botão”. Não volta, não tem jeito – afirma a juíza Andréa Pachá.

 

 

aprenderemos a ser diversos

 

 

– Espero que, no futuro, quando as pessoas digam que respeitam a diversidade humana, incluam todo mundo: travestis, transexuais, lésbicas – afirma o psicólogo da UFRGS e do Hospital de Clínicas Angelo Brandelli Costa, consultor da ONU nas áreas LGBT e saúde. – Hoje, temos de enfiar o amor na equação para que as pessoas entendam – diz Costa, referindo-se ao fato de o casamento homossexual ser autorizado sob o polimento moral do termo “homoafetivo”.

 

A geração que protagonizou as revoluções sexuais e de costumes a partir da década de 1960 o fez na esteira da II Guerra Mundial. Da barbárie, emergiu a consciência sobre a dignidade humana e a necessidade de se respeitar a subjetividade e a individualidade. Também no campo afetivo e sexual, essa caminhada de respeito e tolerância continua, dando passos a cada geração. Segundo pesquisa do centro de tendências JWT Intelligence, divulgada em maio, 82% dos jovens da geração Z (nativos do mundo digital) com 12 a 19 anos dizem não se importar com a orientação sexual, e 88% acreditam que as pessoas exploram sua sexualidade mais do que no passado.

 

– Vamos ter cada vez mais a necessidade de um olhar atento para o outro. Estamos fazendo muitos avanços. Fala-se no respeito à maneira que as pessoas se vestem, há cada vez mais campanhas para que se respeitem as diferenças raciais, de gênero, sociais, como questões de subjetividade. Isso se refletirá no futuro – acredita o professor de Filosofia da Unisinos Clóvis Vitor Gedrat.

 

Somos 7 bilhões de humanos na Terra; em 2050, seremos 10 bilhões. Bilhões de pessoas em atividade sexual, com possibilidade de acessar infinitos referenciais. O elogio à liberdade da geração de 1960 rende novos frutos

à medida que se desestigmatiza a sexualidade – o que ocorre não somente pela garantia de direitos de mulheres, homossexuais e pessoas transgênero, mas também pela maior representação dessas minorias no meio social

 

O Beijo de Klimt (1908, abaixo) e de Wang Du (2005, acima): amor romântico em duas épocas

Fotos: Pete Casellini, CC / Reprodução

DEU EM ZH:

MAIS NESTA EDIÇÃO:

Vídeo: jovens casais comentam previsões

da psicanalista e escritora Regina Navarro Lins