Em 7 de julho de 1994 começava no Presídio Central a sequência de fatos que ficaria marcada na história como a maior rebelião do sistema penitenciário gaúcho. Na tentativa de escapar do cerco, os fugitivos Dilonei Melara, Celestino Linn e Fernando Dias renderam um taxista que acabou jogando seu veículo no primeiro hotel cinco estrelas de Porto Alegre. Após 15 horas de negociações, o caso teve um desfecho após deixar um policial e quatro criminosos mortos, além de reféns gravemente feridos.

Porto Alegre sob alerta

Era para ser uma sexta-feira como outra qualquer no Hotel Plaza São Rafael, no Centro Histórico de Porto Alegre, há 30 anos. Naquela noite de 8 de julho de 1994, além da tradicional estadia de hóspedes, um evento de psiquiatria ocorria em um dos salões. Porém, fora das portas do hotel, um dos mais luxuosos da Capital, a cidade estava em alerta.

Na memória de um dos recepcionistas à época, Iliseo Hentz, um segurança do hotel o alertava sobre as informações de uma perseguição que varava as ruas da Capital. Em um táxi, três criminosos perigosos se aproximavam do Centro Histórico após fugir do Presídio Central (atual Cadeia Pública), com reféns. De repente, o carro que comandavam foi arremessado Plaza São Rafael adentro.

— E aí deu um estrondo, era uma gritaria — conta o ex-funcionário, aos 56 anos e aposentado.

A porta de vidro do estabelecimento na Avenida Alberto Bins virou estilhaços. A sensação era de pânico, descreve Hentz, que, junto a colegas, conseguiu escapar por outra saída.

Táxi onde estava Melara, Linn e Fernandinho foi parar dentro da recepção do Plaza (Dulce Helfer/Agencia RBS)

Reféns no hospital

Esse foi um dos capítulos finais de uma rebelião que iniciou no dia anterior e levou à morte de um policial civil e de quatro criminosos, além de deixar reféns gravemente feridos.

Na tarde de 7 de julho, quinta-feira, pelo menos seis presos-pacientes armados fizeram mais de 20 funcionários reféns no Hospital Penitenciário, anexo ao Presídio Central. Foi o caso da monitora penitenciária Nara Moura da Costa, hoje com 69 anos e aposentada. Logo no início, outros dois presos do Central se juntaram aos amotinados.

— Nas primeiras horas, foi muita gritaria, muito pavor, terror, ameaça. Gritaria todo tempo. E (os criminosos) nos pegavam pelos cabelos, colocavam nas janelas e diziam que não iam gastar arma conosco, que iam deixar as armas para a polícia, que iam nos matar a facadas e que o primeiro que eles escolhessem iam atirar no pátio para mostrar que não estavam brincando — lembra Nara, que ainda carrega traumas desta história.

Recepção do estabelecimento hoje (André Ávila/Agencia RBS)

Melara

Era necessário ganhar tempo, explica Marcos Rolim, então deputado estadual e atualmente funcionário público e professor universitário. À época, ele fez parte do grupo com representantes dos três poderes, polícia e outros órgãos que tocou a negociação com os amotinados.

Uma das principais exigências dos criminosos era que Dilonei Francisco Melara e Celestino dos Santos Linn, presos na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, fossem transferidos para o hospital. Essa condição foi aceita.

— Sem isso, eles (amotinados) nem começariam a conversar. E, se nós não cumpríssemos essa determinação, eles começariam a matar os reféns — pontua Marcos.

Melara foi encontrado morto, com marcas de tiros, em Dois Irmãos, em janeiro de 2005 (Luiz Armando Vaz/Agencia RBS)

Melara era apontado como o maior líder do sistema penitenciário gaúcho e Linn era como seu “braço direito”. Os dois são considerados os fundadores da primeira facção do Estado, a Falange Gaúcha.

Então dentro das grades, Leonel Daboitt de Araujo, hoje com 63 anos e em liberdade, diz não ter participado desse e de outros motins porque queria “procurar ser outra pessoa” e “sair de cabeça erguida”. Quando preso, estudou. Inclusive, junto a Melara, que ele descreve como um “cara bem tranquilo”, mas que “se revoltou com o sistema”. Leonel é um dos integrantes do conselho da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac) de Porto Alegre.

Hora da fuga

Reféns precisaram acompanhar os amotinados em um dos carros disponibilizados para fuga (Antônio Pacheco/Agencia RBS)

Trabalhando na administração do hospital, Eloir da Silva Rodrigues também foi tomada como refém. Aos 79 anos e aposentada, ela recorda que sentiu maior tensão logo no início do motim, embora afirme ter conseguido ficar tranquila e voltar ao trabalho nos dias seguintes. Enquanto mantida sob ameaça dos presos, o tempo se arrastava:

— Amanheceu e nós ali porque nos pegaram de tarde e nos soltaram no outro dia à noite. Foram horas intermináveis.

Soltaram, porém, apenas parte dos reféns — Eloir e Nara estavam nesta leva. Outros foram divididos, junto a 10 presos, em três carros. Sob tom de ameaça, durante a negociação, os amotinados haviam exigido veículos para efetivar a fuga do presídio.

Na noite daquele dia 8 de julho, sexta-feira, era dada a largada a uma perseguição nas ruas de Porto Alegre. O cenário: uma cidade dominada pelo frio e até mesmo com o que reportagens da época descreveram como neve granular. Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia, a mínima chegou a quase 4ºC e, no dia seguinte, a 3,6ºC.

Conflito nas ruas

Assim que arrancaram do presídio, os carros começaram a ser perseguidos pela polícia — algo que não estava no acordo feito entre a comissão negociadora e os presos. Segundo Marcos Rolim, a decisão era que três carros seriam fornecidos, onde os fugitivos sairiam com alguns reféns, e os policiais acompanhariam a distância para que, quando os reféns fossem soltos, se iniciasse a tentativa de abordagem.

Em entrevista à reportagem em 2019, Alexandre Vieira, delegado da Polícia Civil que abriu a caçada aos criminosos, afirmou que "não ia deixá-los matarem reféns como fizeram em outros episódios iguais".
— Eu disse, antes de eles abandonarem o presídio, que a minha tarefa ali naquela comissão tinha esgotado, que eu não ia mais participar de negociação nenhuma, que eu era voto vencido e que eu ia me juntar com os meus policiais na rua e ia combater o crime como sempre fiz — justificou.

Por um dos caminhos, era levado como refém o subdiretor do Hospital Penitenciário à época, Luiz Fernando Barcelos, hoje com 65 anos e aposentado. Ele estava junto a colegas em um veículo comandado por três fugitivos. O tiroteio entre criminosos e polícia era constante, lembra. Na região do Shopping Iguatemi, o carro colidiu em um poste, momento em que o cerco apertou. Os criminosos conseguiram escapar. Um deles feriu com um tiro um motorista de lotação e, depois, acabou dominado por um segurança. Os outros dois se embretaram no clube de golfe Country Club, onde era comemorado um casamento, escapando da polícia.

— Depois, no outro dia, quando nós fomos ver os carros no estacionamento, vimos o veículo em que estávamos. Ele tinha perfuração de bala de tudo que é tipo. Mas, na hora, é aquela coisa: tu não tem nem tempo para pensar. Adrenalina alta — detalha Luiz.

Por onde passaram

Mapa mostra alguns dos pontos onde criminosos estiveram durante motim que iniciou nas dependências do Presídio Central

  1. Presídio Central (Avenida Rócio, 1100)
    O motim iniciou no Hospital Penitenciário
  2. Rua Ivo Corseuil, bairro Petrópolis
    O carro onde estavam Dilonei Francisco Melara e outros criminosos foi encurralado na Rua Ivo Corseuil. No tiroteio, um policial civil morreu e um refém ficou gravemente ferido
  3. Proximidades do Shopping Iguatemi (Av. João Wallig, 1800)
    Um dos carros foi para as proximidades do Shopping Iguatemi, onde colidiu com um poste. O cerco policial se intensificou e os criminosos que estavam a bordo fugiram. Um deles acabou dominado por um segurança na região. Os reféns conseguiram ser liberados
  4. Country Club (Rua Líbero Badaró, 524)
    Os dois fugitivos que estavam nas imediações do Shopping Iguatemi escaparam em direção ao Country Club
  5. Redenção
    O cerco policial voltou a se intensificar próximo ao Parque Farroupilha (Redenção), quando o carro em que Melara estava apresentou problemas
  6. Parada 10 da Lomba do Pinheiro, na divisa de Porto Alegre com Viamão
    Em um terceiro carro, três fugitivos foram mortos pela polícia quando estavam no bairro Lomba do Pinheiro. Os reféns escaparam, mas pelo menos um ficou gravemente ferido
  7. Hotel Plaza São Rafael
    Com um táxi, Melara e outros dois fugitivos invadiram o Hotel Plaza São Rafael, junto a reféns

Cenas de bangue-bangue

Um dos carros utilizados na fuga ficou com um dos vidros quebrados após tiroteio pelas ruas de Porto Alegre (Dulce Helfer/Agencia RBS)

O carro onde estavam melara e seus comparsas, com reféns, foi encurralado por policiais na Rua Ivo Corseuil, no bairro Petrópolis. Um intenso tiroteio matou o inspetor de polícia João Bento Freitas Nunes. Também foi baleado o refém e diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei Carlos dos Santos, que viria a ficar paraplégico. Ele faleceu em 2013.

Em outro ponto, na Lomba do Pinheiro, três fugitivos morreram durante confronto. Os reféns conseguiram escapar, mas não sem ferimentos.

— No outro dia, achavam furos de tiros em várias paredes pela cidade. Houve pelo menos dois acidentes envolvendo viaturas e foi uma loucura. Então foi totalmente diferente (esse motim), porque foram cenas de bangue-bangue pelas ruas de Porto Alegre, com três carros fugindo para locais diferentes e uma perseguição grande — resume o jornalista Renato Dornelles, que pesquisa sobre o sistema penitenciário e fez parte da cobertura da rebelião como repórter em Zero Hora.

A presença da imprensa, aliás, era exigida pelos amotinados no hospital.

— E chegou um momento em que eles (criminosos) quiseram nos trocar por aqueles reféns, porque valíamos mais, na cabeça deles — recorda Humberto Trezzi, repórter de Zero Hora, acrescentando que, desta vez, não houve substituição.

O motim conseguiu roubar a cena no noticiário, mesmo com a circulação da nova moeda (o Real), com o Brasil disputando a Copa do Mundo e com a corrida eleitoral se desenrolando.

Rua Ivo Corseuil hoje (Jonathan Heckler/Agencia RBS)

A invasão ao Plaza

Porta arrombada e um táxi dentro da recepção do Plaza São Rafael no desfecho da perseguição (Valdir Friolin/Agencia RBS)

Após sucessivas trocas de carros, os fugitivos Melara, Linn e Fernando Rodolfo Dias (Fernandinho) embarcaram no táxi de Sílvio Luiz Fontoura Nunes, também feito refém. Em 2004, o taxista relatou à Zero Hora que acompanhava as notícias sobre a rebelião junto à família, mas que, depois de atender a uma corrida fora de hora, acabou virando personagem da história. Ele arremeteu seu Passat para dentro do Plaza São Rafael. De acordo com a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), Sílvio faleceu em 2006.

Curiosos encheram a rua em frente ao hotel (Arivaldo Chaves/Agencia RBS)

"Quando cheguei ao fim do tapete do hotel, aproveitei a confusão para sair fora. A polícia chegou, havia uma pressão muito forte, aquele monte de revólver. Fui para o outro lado da calçada e pensei: 'Mas o que foi que eu fiz? Isso só acontece em televisão, só em filme!'", contou ele naquela ocasião.

Após conseguir entrar no hotel, o auditor noturno da recepção Marcelo Schunke, hoje com 54 anos e na controladoria da rede Plaza, deparou-se com a bagunça: carteiras, chaves de carro, casacos e outros itens deixados para trás na hora do desespero.

Dentro do estabelecimento, um garçom foi baleado e uma funcionária feito refém. Linn saiu ferido e, dias depois, teve a morte confirmada. Melara e Fernandinho, usando três reféns mulheres como escudo, ficaram encurralados, ameaçando matá-las.

Dentro do hotel, objetos foram deixados para trás na hora do desespero (Valdir Friolin/Agencia RBS)

No início da tarde de 9 de julho, sábado, com o desembargador Décio Antônio Erpen como negociador, os dois se renderam. Foram cerca de 15 horas de negociações dentro do hotel. Terminava, naquele momento, o maior motim da história do sistema prisional gaúcho.

Entre os desdobramentos, ainda em julho, um dos fugitivos foi morto pela polícia, após ataque a banco. Outros três foram presos naquele mês. Melara foi encontrado sem vida, com marcas de tiros, no interior de Dois Irmãos, em 2005. No ano seguinte, um outro fugitivo do motim foi assassinado durante uma briga em penitenciária.

  • Carlos Jefferson Souza dos Santos (o Bicudo):
    foi morto em 19 de julho pela polícia, após atacar um banco em Canoas
  • Celestino dos Santos Linn:
    depois de sair ferido da rebelião, foi encontrado morto no dia 11 de julho, no Hospital Penitenciário
  • Dilonei Francisco Melara:
    após fugir novamente do sistema penitenciário, foi encontrado morto, com diversas marcas de tiros, no interior de Dois Irmãos, em janeiro de 2005
  • Fernando Rodolfo Dias (Fernandinho) e Luiz Paulo Schardozin Pereira (Chardozinho):
    o primeiro foi preso após se render no Plaza São Rafael e o segundo, após cerco na região do Iguatemi durante o motim
  • Francisco dos Reis Cavalheiro (Chico Cavalheiro):
    foi preso em 26 de julho, na Vila Divinéia, na Capital. Em outubro de 2006, foi assassinado em uma briga na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas
  • José Carlos Pureza, Nairo Pereira (Boró) e Vladimir Santana (Sarará da Vó):
    morreram em confronto com a polícia na Lomba do Pinheiro durante a rebelião
  • Pedro Ronaldo Inácio (Bugigão):
    foi preso na madrugada do dia 23 de julho, durante uma tentativa de assalto, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre. Com graves problemas de saúde, foi indultado (recebeu perdão de pena) em 2002

Movimentação em frente ao Presídio Central em 8 de julho de 1994 (Dulce Helfer/ Agencia RBS)

Presídio Central se transforma em Cadeia Pública de Porto Alegre

  • Episódios de motins, tomadas de reféns e fugas de criminosos fizeram, em 1995, a Brigada Militar assumir a administração do Central e de outras cadeias do RS
  • Passados 28 anos, em agosto de 2023, a administração do Central voltou a ser dos agentes penitenciários, hoje Polícia Penal
  • Desde julho de 2022, as instalações passam por reforma
  • Em dezembro de 2023, o local foi totalmente desocupado
  • Com a nova cadeia, o objetivo, segundo o governo do Estado, é solucionar problemas de superpopulação e violação de direitos humanos, assim como reforçar a fiscalização e enfraquecer organizações criminosas
  • Conforme a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo, a obra está 94,3% concluída e a previsão é de que fique pronta ainda em julho

Área onde ficava o hospital hoje está em obras (Renan Mattos/ Agencia RBS)

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