Pelé

e o Rio Grande do Sul

Montagem sobre fotos de Carlos Rodrigues e Diego Vara, BD/ Agência RBS

Pelé contra os gaúchos

Luís Henrique Benfica
Jones Lopes da Silva

Um garoto magérrimo, de pernas finas e meio assustado chegou a Porto Alegre em março de 1957 com a delegação do Santos, que já ostentava o garboso título de campeão paulista. Tinha apenas 16 anos e quatro meses. A equipe se alojou no antigo Hotel São Luiz, número 45 da Avenida Farrapos, quase na esquina da Conceição, que ainda era rua, não viaduto. O Santos desfilava estrelas. Zito, Pepe, Gilmar, Jair da Rosa, Pagão, Del Vechio, Dorval. E o garoto, que chegara aos 15 anos e meio à Vila Belmiro, ainda não galgava lugar no time do técnico Lula, apesar de infernizar nos treinos.
Portanto, o menino veio ao Sul em busca de experiência. O Santos começou a excursão de oito jogos contra o Grêmio em 12 de março, no Olímpico. Pelé entrou aos 25 minutos do segundo tempo, no lugar de Del Vecchio.
Milton Kuelle, remanescente daquele Grêmio, nunca esqueceu aquele guri atrevido. — Ele já chegava com o pé por cima da bola — reparava Milton.
O Grêmio ganhou o amistoso por 3 a 2 — e aquele era apenas o sétimo dos 1.375 jogos de toda a carreira de Pelé.
Seria também o primeiro de 32 confrontos que o Rei realizaria com o Santos e com a Seleção Brasileira jogando no Sul ou contra Grêmio e Inter em São Paulo. Pelé marcaria 16 gols contra gaúchos, quase nada perto dos seus 1.281 gols na carreira. O Santos não engoliu a derrota na estreia da excursão. Pediu revanche. Antes disso, Pelé passeou com o porto-alegrense Dorval, um ponta- direita que havia saído do clube Força e Luz. Andaram pela Avenida Farrapos, Rua Barros Cassal, passaram pela Avenida Independência e voltaram para a Farrapos pela Conceição. Aquele 13 de março de 1957 talvez tenha registrado uma das últimas vezes em que Pelé andou anônimo em locais públicos pelo mundo, apesar dos 16 anos.
Na revanche, o vingativo Santos fez 5 a 0 no Grêmio de Figueiró, Airton, Ênio Rodrigues, Gessy, Milton, Vieira e Juarez. E no Olímpico. E o Santos foi enfrentar o Rio-Grandense no Torquato Neto. Venceu de 5 a 3, e Pelé entrava ao final, como na vitória de 3 a 2 sobre o Pelotas e no 2 a 2 com o Brasil-Pel. No Grande Hotel, um dirigente xavante sugeriu a troca de Joaquinzinho pelo garoto corisco que ninguém parava. O técnico Lula rechaçou a proposta.
Em Pelotas, a delegação visitou a Charqueada São João, e o adolescente se impressionou com os grilhões da época da escravatura. Sua avó havia sido escrava.
Foi nos cocurutos do Estádio Pedra Moura que Pelé marcou seu primeiro gol no Sul, no 1 a 1 contra o combinado Bagé-Guarany. Gol de Bilé, descreveu o jornal local, em registro corriqueiro. Gol número 3 da carreira.
De volta a Porto Alegre, Pelé afinal atuou o tempo inteiro no antigo Estádio Tiradentes, na esquina das avenidas Sertório e Farrapos, zona norte de Porto Alegre — o campo não existe mais. O Santos perdeu de 5 a 3 diante do time do Renner, do goleiro Valdir de Morais e do meia Ênio Andrade. Mas aplicou 4 a 1 no combinado Caxias e Juventude, no Jaconi. Pelé fez o quarto gol de sua carreira. Um ano e meio depois, em julho de 1958, aquele garoto, então aos 17 anos e nove meses, se tornaria dono da 10 da Seleção Brasileira, faria dois gols espetaculares na final da Copa contra a Suécia, seria campeão do Mundo e ganharia as honras de Rei do futebol. Correram o mundo as imagens do choro de Pelé menino nos braços do goleiro Gilmar e do rei sueco Gustavo apertando-lhe a mão negra e trêmula na comemoração do título.
Quando voltou ao Sul aos 18 anos, Pelé já era ídolo mundial e goleador de tudo, do Campeonato Paulista de 1958 e 1959, da Copa América de 1959 e o maior artilheiro de uma temporada ao festejar 127 vezes. Ele comandou os 4 a 1 do Santos sobre o Grêmio na partida de ida da Taça Brasil, em novembro de 1959. No retorno a Porto Alegre, em janeiro de 1964, Pelé já era bicampeão do mundo com a Seleção e bi da Libertadores e do Mundial de Clubes com o Santos. Contra o Grêmio, no Olímpico, Lumumba fez 1 a 0 — e então a dupla Pelé e Coutinho costurou as tabelas mais incríveis e virou para 3 a 1.
Em janeiro de 1964, pouco antes do golpe militar, Pelé cometeu a proeza de marcar três gols, virar o jogo para 4 a 3 sobre o Grêmio e segurar a vitória atuando cinco minutos como goleiro. Além de tudo, ele defendia bem. Costumava treinar no gol na Vila Belmiro. Pois no dia 19, no Pacaembu, ele já havia deixado tontos os zagueirões Airton e Áureo ao marcar três gols. Aos 42 minutos tomou o lugar do goleiro Gilmar, que havia sido expulso — à época, não era permitida substituição. Pelé se ofereceu e vestiu a camisa preta e acolchoada no peito com o distintivo SFC no centro e, sem luvas e sem joelheira, evitou o empate arrojando-se nos pés de Joãozinho.
Seis meses após o fracasso da campanha pelo tri na Copa de 1966, na Inglaterra, o Santos voltou direto de excursão de quase um mês pela América do Sul (sempre havia uma excursão pelo mundo) e desembarcou direto em Porto Alegre para jogar no Olímpico pelo antigo torneio Roberto Gomes Pedrosa, o Robertão, em março de 1967. Mesmo cansado, Pelé enfrentou um duelo com o Grêmio de Alcindo, de quem havia se tornado amigo na Seleção. Ambos marcaram no empate em 1 a 1. À época, com tantas viagens ao Exterior, Pelé se queixava que mal podia ver a pequena Kelly Cristina, recém-nascida do primeiro casamento com Rosemari Chalbi.
Três dias depois, de volta à Vila Belmiro, mesmo extenuado, o Santos de Gilmar, Carlos Alberto, Oberdan, Mengálvio, Clodoaldo, Pelé e Edu aplicou 5 a 1 no Inter de Scala, Sadi, os novatos Bráulio, Claudiomiro e Dorinho e um ponta de lança chamado Davi Magalhães. O tal Davi, paulista de Campinas, que jogara pelo Corinthians, era casado com Maria Lúcia, a irmã seis anos mais nova de Pelé. No dia dos 28 anos, Pelé veio a Porto Alegre. Enfrentaria o Inter pelo Robertão. Era 23 de outubro de 1968. O Beira-Rio só seria inaugurado em abril de 1969, e os grandes jogos ainda eram realizados no Olímpico. A RBS tratou de homenageá-lo com um gigantesco bolo de 3 metros de altura e 400 quilos. Antes do jogo da noite, uma Kombi transportou o tal bolo na carroceria pelas avenidas Borges de Medeiros e Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, até chegar chegar ao Olímpico. Quando entrou em campo, Pelé se surpreendeu com a montanha de guloseima:
— Quem vai comer esse bolo todo?
Foi a torcida quem se se fartou nas arquibancadas lotadas. E Pelé retribuiu a homenagem com cruel gentileza. Fez um gol e deu passes para outros dois na vitória santista por 3 a 1. Na noite festiva, o Inter pagou o pato.
Dias depois, contra o Grêmio no Parque Antártica, na noite chuvosa de 27 de novembro de 1968, Pelé chutou de efeito, a bola tomou altura e caiu de súbito atrás do goleiro Alberto. Gol de folha seca, como fazia Didi. Depois, o Rei bateu duro em Paulo Souza. Advertido pelo árbitro gaúcho Agomar Martins, Pelé reclamou com em tom alto:
— Você viu o quê?
— Você, não. O senhor é rei do futebol, mas aqui o rei sou eu, está na rua. Aquela foi a 13ª das 14 expulsões da carreira. Mas o Grêmio levou 3 a 1. O Inter também perdeu dias depois, por 2 a 1, com mais um gol de Pelé, no Olímpico. Ao final, o Rei surpreendeu. Perseguido por batalhão de gente atrás de sua camisa, ele procurou o zagueiro Bibiano Pontes e o presenteou com a mítica 10. Pontes gaguejou um muito obrigado.
No festival de inauguração do Beira-Rio, a Seleção trouxe as Feras do Saldanha, entre elas Carlos Alberto Torres, Piazza, Gerson, Jairzinho, Pelé, Tostão, Rivellino e Caju e venceu o Peru por 2 a 1. Pelé esteve discreto. Meses antes da Copa do México, voltou ao Beira-Rio com a Seleção. Hospedado no Hotel Embaixador, mandou um assessor comprar um par de calçado Adams, de couro e bico arrebitado, em uma loja na Rua Marechal Floriano. À noite, a Seleção sofreu 2 a 0 diante da Argentina de Cejas e Perfumo.
Dois meses após a catarse da conquista do Tri de 1970 no México, o Santos enfrentou o Grêmio na inauguração do Colosso da Lagoa, em Erechim. Edinho, o segundo filho, recém havia nascido. De tão emotivo, Pelé decidiu marcar o primeiro gol do novo estádio nos 2 a 0 da vitória santista. Numa outra vez, de tão assediado por curiosos, políticos e autoridades, Pelé se refugiou no Hotel Everest. Perto dos 31 anos, ele ouviu alguma vaia em Porto Alegre. Ainda assim, a cada chegada do Rei a cidade vivia um frenesi e se instalava o caos no trânsito.
Os duelos são parte da história. Pelé perdera para o Inter de Figueroa no Morumbi, gol de Bráulio. Prometeu dar o troco. Em 1973, marcou um gol e infernizou Figueroa na vitória santista por 2 a 0. Noutro jogo, o zagueiro Renato Cogo provocou. Pelé resolveu jogar e venceu o Grêmio por 4 a 3. Não era aconselhável provocar o gênio.