Pelé

Esporte

Montagem sobre fotos de Carlos Rodrigues e Diego Vara, BD/ Agência RBS

Pelé e Garrincha, uma parceria imbatível

Valter Junior
valter.santos@zerohora.com.br

Existem temas que a ciência ainda não explica, como o destino do Universo, o Triângulo das Bermudas, por que as vacas só se alimentam voltadas para o Norte ou para o Sul e Garrincha e Pelé juntos. É inexplicável encontrar razão para que um jogador considerado infantil e sem garra desse certo ao lado de um ponteiro com as pernas tortas. O fato é que nem antes nem depois o futebol viu uma dupla como a formada pelos dois.
O primeiro a contrariar a sapiência de estudiosos foi Vicente Feola. O treinador desconsiderou o perfil psicológico traçado por Jorge Carvalhaes e convocou Pelé para a Copa do Mundo de 1958, mesmo que a avaliação do psicólogo da Seleção Brasileira tenha sido que o camisa 10 não tinha maturidade para jogar, além de lhe faltar espírito de luta.
Caso a ciência conseguisse explicar o fenômeno da relação em campo entre o menino de 17 anos e Mané, então com 24, eles não teriam ajudado o Brasil a protagonizar o que ficou conhecido como os três minutos mais incríveis da história das Copas do Mundo. Em um Mundial disputado em meio à Guerra Fria e à corrida espacial, os soviéticos implementaram estudos minuciosos para formar o time que representava o país nos campos de futebol a ponto de a União Soviética apresentar o chamado "futebol científico".
Na época, bradava-se que os jogadores tinham fôlego para jogar 180 minutos e ainda dançar um pouco de troika. Nos dias de jogos, eram submetidos a exercícios de ginástica pela manhã. Ainda se especulava que KGB tinha agentes que acompanhavam os treinamentos dos adversários e enviavam relatórios para a comissão técnica. O modelo brasileiro era bem menos metódico.
— O senhor já combinou com os russos? — questionou Garrincha ao receber as instruções de Feola antes da partida entre os dois países.
Certamente, os espiões devem ter sido punidos pelos primeiros 180 segundos de jogo. O zagueiro Kuznetsov provavelmente se questionou se não era melhor tentar entrar no Bolshoi do que marcar Garrincha. Ainda com a camisa 11 nas costas, ele deixou o defensor do avesso com tantos dribles em tão pouco tempo. Foram duas bolas na trave, uma de Mané, e outra de Pelé. Além do gol de Vavá, que marcaria outro no segundo tempo para fechar a partida em 2 a 0.
Seria perfeito se a sintonia entre os parceiros tivesse sido imediata e começado de maneira tão arrasadora, mas a história tem suas imperfeições e não avisa quando abre sua porta para se apresentar. A espionagem soviética tinha suas justificativas para ter sido pega desprevenida.
A estreia da dupla tinha sido apenas 28 dias antes daquele terceiro jogo do Mundial da Suécia — antes o Brasil vencera a Áustria por 3 a 0 e empatara com a Inglaterra em 0 a 0, no primeiro jogo sem gol na história das Copas. Não teve alerde para aquele Brasil 3 a 1 sobre a Bulgária, com dois gols de Pelé. A junção ocorreu porque oito titulares foram poupados daquele amistoso no Pacaembu.
Mais de seis décadas depois, ainda está por ser formada uma parceria tão profícua no futebol. Entre 1958 e 1966, a Seleção Brasileira teve o privilégio de ter os dois juntos em 40 partidas sem nunca ter sido derrotada. Foram 36 vitórias e quatro empates. Só entre si marcaram 55 gols, 44 de Pelé.
— Nos entendíamos bem durante os jogos, isso é tudo. Quando morreu, me censuraram porque não fui ao enterro. Não fui porque não gosto de enterros e porque não estava ligado ao Garrincha — declarou Pelé, em entrevista à revista Época em 2000. A sintonia não se repetia quando a comunicação não era feita através da bola. As personalidades e o modo como se relacionavam com o futebol eram diferentes. Garrincha era um jogador de bola, era a alegria do povo. Pelé era um atleta dedicado. Ao fim das carreiras, um foi seguir a vida de Rei, o outro perdeu a luta contra a bebida.
Assim como a porta da história se abre sem avisar, ela também se fecha. Para os dois, ela apresentou sua última fresta na estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1966. Tudo acabou contra quem tinha começado. Diante da Bulgária, cada um deles marcou um golaço de falta no 2 a 0, em Liverpool. Lesionado, o camisa 10 ficou de fora da derrota para Hungria. Na despedida contra Portugal, Pelé retornou, mas Garrincha esteve ausente. Desde então, o futebol nunca mais viu nada igual.

Pelé norte-americano

Luiz Zini Pires

Pelé não queria voltar. Aos 34 anos, achava-se velho, cansado, esgotado no começo de 1975, depois de deixar o futebol em outubro do ano anterior, 18 anos entre Santos e Seleção Brasileira. Abominava concentrações, apesar das regalias, longos voos, sem negar assento na primeira classe nos últimos tempos, trocas de hotéis, mesmo cada vez melhores, os fusos horários diferentes, a distância da família, a rotina dos estádios e, claro, as sequelas das lesões. Pelé tinha dores terríveis nos joelhos e nos tornozelos depois de quase duas décadas sofrendo pancadas cada vez mais fortes de zagueiros.
Pelé considerava-se jogador de um time só, do Santos do seu coração, casa, lar, fortaleza. Não se via com outra camisa e não sonhava com o Exterior, o Brasil era a sua terra. Tinha conquistado tudo de chuteiras, todos os títulos possíveis, e arregimentado fãs em todos os idiomas, mas algo o incomodava, roubava o sono. Suas contas bancárias não batiam bem.
Os investimentos comiam parte grossa da renda. Os negócios fugiram do controle. Faltava dinheiro. Escolhia mal sócios, assessores e advogados. No dia seguinte ao jogo com a Ponte Preta, na Vila Belmiro, na noite de 2 de outubro de 1974, a quarta-feira do adeus, os contatos se intensificaram. Segundo o Dicionário Santista, de José Roberto Torero, no dia 1º de abril de 1962, 53 jornais da Europa publicaram que clubes das suas cidades haviam contratado Pelé. Desde então, o movimento atravessou duas décadas e as sondagens nunca pararam. Trintão, recebeu propostas da Espanha e da Itália. Desdenhou. Imaginava que não jogaria mais em alto nível. Mas, ao contrário dos europeus, decididos dirigentes americanos ligados ao The New York Cosmos não aceitavam um "não" como resposta. Sopravam no ouvido do jogador:
— Você parou cedo demais.
Atrás do NY Cosmos, quase desconhecido, erguia-se o império da Warner Communications, comandado por Steve Ross, que via na incipiente North American Soccer League (NASL) o instrumento para popularizar o futebol nos EUA, faturar milhões de dólares e alegrar os acionistas. O Cosmos, de verde e amarelo em homenagem à Seleção Brasileira, depois trocado por verde e branco, era da liga nacional desde 1970. Com Pelé, mudaria de patamar. Passaria a ser grife planetária.
Os executivos não só o alcançavam por telefone como mandavam emissários ao Brasil. Marcavam café da manhã, almoço e jantar com o brasileiro na Inglaterra, em Paris, em Tóquio. Envolveram empresários, políticos, a então CBD, a Fifa e até o governo dos EUA no projeto. O poderoso secretário de Estado Henry Kissinger, um alemão naturalizado norte-americano e fã de futebol, abraçou a ideia. Aproximou-se de Pelé — os dois ficariam amigos depois — e ajudou a convencê-lo. O Rei não só receberia um cheque de US$ 7,5 milhões por um contrato de três anos, o maior de um atleta na época, como seria celebrado como "embaixador do futebol mundial" e ainda ganharia assessoria especial para controlar e turbinar as suas finanças. As propostas tentaram o brasileiro. Oito meses após deixar o Santos, Pelé, ainda um pouco relutante, aceitou o convite, não sem antes sentir uma forte pressão do novo e poderoso presidente da Fifa, João Havelange. Decidiu adotar a 10 do Cosmos e entrar no mundo dos milionários.
Pelé estreou pelo Cosmos contra o Dallas Tornado, no empate de 2 a 2, no dia 15 de junho de 1975. O jogo foi tratado como o "Retorno do Rei" pela imprensa. Ganhou transmissão de TV ao vivo, jornalistas de todo o mundo. Mas não empolgou. O futebol era um jogo marginal na região na época — como mostra o documentário O Mundo ao Seus Pés, A Extraordinária História do The New York Cosmos. O craque máximo foi anunciado no Downing Stadium, em Randall's Island, uma ilha ao lado de Manhattan, um espaço dedicado ao beisebol, com suas marcas bem visíveis, gramado ralo, buracos e pontos com areia, um legítimo campo de pelada com lixo e garrafas quebradas. Na TV e nas rádios era chamado ora de Pelé ora de Edson Arantes do Nascimento.
Em um gramado pintado com tinta verde para esconder imperfeições, Pelé inaugurava o futebol nos EUA. Ao lado de jogadores experientes, semiprofissionais, alunos de universidades, que nem amarrariam a sua chuteira. Entrou todo de branco, com o 10 às costas e no calção e abriu uma enorme bandeira americana diante de 21.278 pessoas. Bem maior que a média de 3 mil dos jogos de até então no país. A torcida de barulhentos imigrantes sul-americanos, fãs de esporte e curiosos, o aplaudiu de pé. Pelé não fez um grande jogo, só algumas jogadas geniais. Em Nova York, apesar de conviver com famosos e lugares da moda, Pelé não estreitou relações com astros e estrelas. Saiu algumas vezes com Frank Sinatra, também da Warner, mas a amizade não prosperou.
Pelé circulava pela cidade com um Cadilac azul, sempre em companhia de um motorista do Brasil. Foi recebido na Casa Branca, bateu bola com presidentes, estrelou campanhas publicitárias e viajou o mundo. Na sala do seu apartamento, localizado em um bairro chique, exibia uma imagem sua assinada pelo mestre pop-art Andy Warhol. O presente vale uma pequena fortuna.
Entre 1975 e 1977, Pelé disputou 107 partidas pelo Cosmos. Marcou 64 gols. Ganhou um título no último ano. Mas só venceu porque a equipe sacou os semiamadores e foi reforçada pelo alemão Franz Beckenbauer, os brasileiros Marinho Chagas, Rildo e Carlos Alberto Torres, o italiano Georgio Chinaglia, o peruano Ramon Mifflin, o inglês Stephen Hunt, entre outros. Em determinados momentos, o time abrigou jogadores de 16 nacionalidades. Na sequência, o campo de beisebol maquiado foi substituído pelo imponente Giants Stadium, em East Rutheford, New Jersey, que receberia sete jogos da Copa do Mundo de 1994.
Na grama, maltratada, transplantada ou sintética, Pelé fez jogadas de Pelé com sua nova camisa. Fez até gols que deixou de marcar nos quatro Mundiais que disputou, como aquele em que quase venceu Viktor, da antiga Checoslováquia, em 1970. De quase 70 metros de distância, viu o goleiro adiantado e arriscou o chute. A bola passou zunindo pelo travessão. Sete anos depois, no Giants Stadium, Pelé repetiu a jogada de Copa numa partida contra o Tampa Bay. Desde o meio-campo, ele marcou mais um gol espetacular.
O sucesso do maior jogador de futebol de todos os tempos em um país em que os esportes mais populares são praticados com as mãos foi tamanho que o seu amigo Kissinger usou a famosa revista Time para fazer uma ode ao craque. Anunciou a chegada e a celebração de um mito. E foi além: — Pelé se tornou uma instituição. A maioria dos seus fãs nunca o viu jogar e, ainda assim, eles se sentem como parte de suas vidas.
Pelé despediu-se do futebol, desta vez para sempre, no dia 1ª de outubro de 1977. Jogaram Cosmos e Santos, em Nova York, na frente de 75 mil pessoas. O camisa 10 atuou 45 minutos em cada lado. Marcou um gol de falta no primeiro tempo. Tentou descontar de todas as formas depois com a mítica camisa 10 do Santos. Não conseguiu. Os brasileiros sofreram 2 a 1. Ele queria muito marcar seu último gol atuando pelo Santos.
No final, usando uma camisa verde, pegou o microfone e pediu paz. Com o grande Muhammad Ali ao lado, amparado pelo conterrâneo Carlos Alberto Torres, ergueu os braços. Com os dedos em V, pediu "Love, Love (amor)". No ano seguinte, Caetano Veloso gravou Love, Love, Love, música do disco Muito, em homenagem ao jogador. Pelé vestiria camisa, calção, meias e chuteiras mais oito vezes. A última foi na festa dos seus 50 anos, no dia 31 de outubro de 1990, em Milão, na Itália. Nesta época, a breve popularidade do futebol nos EUA se desmanchava aos poucos. Os grandes jogadores saíram, e o público nos estádios murchou. A NASL encerrou as atividades em 1984. O Cosmos, que havia vencido sete títulos entre 1971 e 1984, fechou e voltou. Dos 20 maiores públicos da extinta NASL, 18 são seus. A Copa do Mundo dos Estados Unidos de 1994 deu um alento.
O sucesso de Pelé foi comprovado pelo ator Robert Redford. Os dois tinham escritório no mesmo prédio, mimo da Warner Bros, em Nova York. Um dia o astro encontrou Pelé rodeado por admiradores na saída do edifício. A cena se repetiu outras vezes. Ninguém pedia autógrafo a Redford. Pelé sofria o assédio de uma pequena multidão.