Como impulsionar a economia local
O desenvolvimento regional também passa por uma série de comportamentos da população e da convivência entre pequenos e grandes negócios
REPORTAGEM
Caue Fonseca
EDIÇÃO
Eduardo Rosa
DESIGN | ILUSTRAÇÃO
Leonardo Azevedo
PROGRAMAÇÃO
Hermes Wiederkehr
Início
Até meados da década passada, o único vínculo entre exercício físico e a Rua Silva Jardim eram as suas lombas, desafiadoras para as panturrilhas assim como as ruas vizinhas do bairro Mont'Serrat, em Porto Alegre. O comércio se limitava a lojas de material de construção ou de peças automotivas.
A mudança começou com um pequeno boom imobiliário de edifícios residenciais de classe média e de escritórios. E, para suprir uma demanda dos seus novos habitantes, vieram as primeiras academias, entre elas a Body One, em 2006. Em 2012, ela seria comprada pela rede carioca Bodytech. No final de 2014, quando retornou de uma temporada de dois anos em Londres, Camila Wait trouxe na bagagem a percepção do crescimento de um estilo de vida atento à origem dos alimentos e à cadeia produtiva, privilegiando feiras e mercearias locais. Abrir um empreendimento voltado para isso fazia particular sentido para ela e o marido, seu sócio. Porém, em termos de oportunidade de negócio, ainda se tratava de algo incipiente na cidade. O que levou Camila a aproximar sua ideia a um público potencial.
— As pessoas já estavam pensando sobre isso, mas ainda era algo muito nichado. Pesquisando sobre o ramo, conheci o Armazém Vale das Palmeiras, do ator Marcos Palmeira, que ficava exatamente ao lado de uma Bodytech no Rio de Janeiro — conta Camila.
Quando encontrou uma sala comercial novinha em frente à academia em Porto Alegre, Camila dispensou outros pontos cogitados — salas perto da Praça da Encol e do Parcão — e apostou na Silva Jardim para abrir a Bendita Horta, charmosa mistura de mercado com bistrô especializado em alimentos orgânicos e sazonais.
Cerca de um ano e meio depois, quando Kleber Jarczewski procurava o negócio ideal para uma loja de conveniência de um posto de combustíveis na mesma rua, fez uma pesquisa de mercado na região. Contabilizou nada menos do que 20 estabelecimentos voltados a exercício físico, alimentação saudável e bem-estar em um raio de 800 metros, além da circulação de dezenas de profissionais liberais. Não teve dúvidas: abriu uma Mundo Verde, franquia de produtos saudáveis.
Prestes a completar quatro anos da Bendita Horta, Camila fala com carinho da região:
— Há toda uma comunidade com estilo de vida saudável. As pessoas compram na Bendita Horta, saem com a sacola, vão à academia malhar, vão à estética, vão à ioga... E, ao fazer isso, elas circulam. Hoje, já se observa gente só passeando mesmo. É muito legal ver as pessoas dali conseguindo sair mais, se movimentar mais. Essa questão de ir a pé, nem que seja enquanto o carro fica em um estacionamento da região durante o turno, é muito importante.
Pequenos e grandes juntos
Além de pessoas suadas em boa forma, a Silva Jardim parece reunir uma série de exemplos de comportamentos recomendados por especialistas quando o tema é impulsão da economia regional — no seu caso, para se tornar um polo de bem-estar em um bairro nobre de Porto Alegre. A começar pela convivência entre pequenos e grandes negócios de um mesmo setor.
Diferentes estudos apontam para a importância, a fim de impulsionar a economia de uma região, de seus habitantes privilegiarem pequenos comércios locais em vez de grandes redes. O dinheiro gasto no restaurante de um vizinho, por exemplo, circula três vezes mais na própria região em comparação a uma cadeia de restaurantes cujos insumos não vieram dali e os lucros não ficarão ali.
Porém, segundo Marcos Tadeu Lelis, professor de Economia da Unisinos e Consultor em Inteligência Comercial e Competitiva, a presença de uma grande rede tem outros benefícios a serem considerados.
— É verdade: a maior parte da renda de uma grande empresa não fica onde ela está, mas é preciso pensar que ela está gerando emprego naquele local e circulação, podendo inclusive atrair pessoas de outras regiões. Nos estabelecimentos menores, quase toda renda fica na região, mas a capacidade de geração desses benefícios é menor — compara.
Voltando ao caso da Silva Jardim, é o que podemos observar a partir da presença da Bodytech, uma cadeia nacional de academias que decidiu investir naquela região da Capital. Não fosse o vizinho de luxo, a Bendita Horta e outros tantos negócios — inclusive outras academias, menores — provavelmente não estivessem ali.
Tanto grandes quanto pequenos, na visão de Lelis, podem fazer mais por uma região se pensarem em como se relacionar com ela além dos seus negócios propriamente ditos. O segredo é "germinar" desenvolvimento na região.
— Nesse campo, ainda podemos evoluir na troca entre poder público e iniciativa privada. O primeiro pode informar o segundo do que aquela região necessita, e oferecer compensações pelo investimento. Um grande supermercado pode adotar uma praça da região. Um pequeno negócio pode sediar um trabalho voluntário aos finais de semana — exemplifica.
Como dar a destinação correta para o lixo
Leia também o especial anterior da campanha 1 ano + alegre
Novo consumidor, nova cidade
Porém, talvez a principal mudança de exemplos como o da Silva Jardim não esteja nos comércios, mas nos seus clientes. Houve ali uma adaptação dos negócios a um tipo de consumidor com novos interesses e maior nível de informação. Observa-se que a Bendita Horta não vende apenas produtos, mas atua como um facilitador para que o consumidor ponha em prática novos valores pessoais.
Aquele tipo de consumidor não quer mais morangos o ano inteiro se ele tiver agrotóxicos. Prefere frequentar um local que faça receitas igualmente boas, mas com morangos no verão e bergamotas no inverno, respeitando a estação de cada um. Também ocorre ali uma mistura que hoje precisa ser constante entre trabalho e bem estar. O primeiro não pode mais ocorrer em lugares grandes e áridos para onde se viaja de carro no início do dia e se retorna no final de tarde. O segundo tampouco pode ser restrito aos finais de semana.
Na visão de Adelar Fochezatto, professor da Escola de Negócios da PUCRS, essa mudança está diretamente relacionada à juventude tanto dos empreendedores (Camila, à época, tinha 31 anos) quanto da clientela. Seja no corpo, seja na visão de mundo.
— A população de Porto Alegre está envelhecendo, e às vezes parece que Porto Alegre está envelhecendo junto. O desenvolvimento local de uma cidade está diretamente ligado ao capital humano jovem. Mais oportunidades de negócio apareceriam se estivéssemos preocupados com o que o jovem está interessado, pois é dele que vem a inovação, tanto ao empreender quanto ao consumir. E para esse pessoal ficar na cidade, é preciso mantê-la vibrante — aponta o professor.
A visão de Fochezatto vai ao encontro do que o consultor espanhol Josep Piqué falou em julho passado, ao abrir o evento inaugural da Aliança para a Inovação em Porto Alegre, esforço de UFRGS, PUCRS e Unisinos com a prefeitura de Porto Alegre. Piqué salientou a importância de que a capital gaúcha retenha seus jovens talentos, e isso se dá oferecendo não apenas emprego.
— As pessoas desejam viver a vida em sua plenitude. Não adianta garantir o desenvolvimento profissional em uma região, se aquelas mesmas pessoas não puderem ter o mesmo desenvolvimento pessoal nelas. Principalmente os jovens empreendedores, que desejam estar em um lugar em que se sintam participando do mundo globalizado. Por isso, não se pode desprezar a importância de vida cultural, de gastronomia, de entretenimento em uma cidade.
Porto Alegre sob medida
De Londres, onde atua como professor visitante na Queen Mary University, o professor de Economia Criativa da UFRGS Leandro Valiati faz coro ao discurso do espanhol. E faz um alerta a Porto Alegre:
— Em situações de crise econômica, os investimentos em cultura e ciência são sempre os primeiros cortados. Os governos não fazem ideia do quanto a negligência com o patrimônio cultural se torna uma tolice a médio prazo, tornando a cidade desinteressante e pouco atraente ao turista e à própria população. Embora seja difícil mensurar, o impacto econômico disso aparece lá na frente.
Todavia, Valiati e os outros especialistas consultados para essa reportagem são unânimes em afirmar que Porto Alegre — por seu porte médio e por suas particularidades geoeconômicas — é uma cidade sob medida para fazer uma transição para um desenvolvimento econômico nos moldes do século 21. Segundo Valiati, a capital gaúcha tem potencial para replicar à sua maneira o que cidades inglesas como Londres, Manchester e Liverpool fizeram no final da década de 1990.
— Essas cidades decidiram enfrentar um processo de desindustrialização, quando aparece a concorrência de países como a China, apostando na indústria criativa. Hoje, a desindustrialização de aglomerados urbanos como Porto Alegre é igualmente inevitável, mas o fato de ela ser uma cidade média, com problemas de metrópole contornáveis e cheia de universidades faz com que ela possa buscar saídas semelhantes — aponta.
Na Inglaterra, o caminho se deu por meio de uma aposta séria do poder público em setores que requerem criatividade, habilidade e talento com potencial para a criação de riqueza e emprego por meio da exploração da propriedade intelectual. Essa aposta, na prática, passou pela revitalização de espaços degradados e pelo investimento em pesquisa e formação. O movimento, à época, ganhou o apelido de Cool Britannia.
Marcos Lelis, da Unisinos, aponta pelo menos dois polos em que Porto Alegre já aposta, mas que podem ganhar ainda mais investimento e atrair capital humano jovem intelectual: o polo da saúde, impulsionado por pelas faculdades de Medicina e grupos hospitalares, e os ramos de software e TI, hoje em desenvolvimento em incubadoras de universidades como o Parque Científico e Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc) e Parque Tecnológico São Leopoldo (Tecnosinos). Adelar Fochezatto, da PUCRS, concorda, com uma ressalva importante:
— Esses são setores em que o talento importa muito mais que a localização geográfica. Mas ao contrário do que isso faz parecer, isso torna a cidade onde você mora uma escolha ainda mais decisiva. Pois pouco importa o que você faz, onde está sediada a empresa para quem você trabalha, mas importa é a cidade em que você está quando sai na rua.
É o desafio posto a Porto Alegre: manter uma economia aquecida e uma vida social atraente até o ponto em que ambos se tornem indissociáveis. Seja no escritório trabalhando para o mundo, seja na volta da academia consumindo produtos locais. Potencial, felizmente, é o que não falta.