A misteriosa morte de 10 cães em um abrigo para animais em Viamão, em menos de um mês, virou caso de polícia. Exames apontam como provável causa das mortes a ingestão de ração mofada. No intuito de dar explicações aos tutores dos bichinhos, o proprietário do estabelecimento encaminhou a comida seca dada aos animais para exames de laboratório e o resultado das análises aponta provável contaminação por aflatoxina, um tipo de toxina gerada por fungo em alimentos velhos ou mal acondicionados. As necrópsias dos cachorros também apontaram o mesmo problema como possível causa da morte deles.
O abrigo de Viamão, num sítio, é especializado em cuidar de cães que foram adotados, em situação de rua. Os protetores resgatam os animais, os entregam ao abrigo e contribuem financeiramente com o tratamento deles. Eram mais de 40 cachorros lá, antes das 10 mortes. O dono do local recebe uma ajuda para cuidar dos bichos.
O dono do abrigo de cães, Marcelo Artigas, registrou queixa na Polícia Civil na sexta-feira (26) e pretende exigir ressarcimento da indústria de rações, além de interdição dos lotes de comida suspeitos. Ele assegura que a loja onde compra o alimento armazena o material em boas condições e acredita que a contaminação se deu no processo de fabricação da ração. Ainda não está definida qual delegacia vai investigar o episódio.
— É possível que tenham usado farinha armazenada há muito tempo, restos mofados, para compor a ração, que mescla milho e carne. Pedi à polícia exames no material produzido pela fábrica — pondera Artigas.
Ele relata que todos os cães estavam bem e, subitamente, começaram a ficar apáticos, apresentar fezes com sangue e olhos amarelados. Morreram em horas, apesar dos esforços dos veterinários chamados às pressas. Outros cães adoeceram e estão em tratamento
Um veterinário que atendeu alguns dos animais conversou com a reportagem, sob anonimato. Ele suspeita que grãos armazenados durante muito tempo possam ter espalhado mofo na ração.
— Em poucos dias, vários animais demonstraram o mesmo sintoma. Pelo exame clínico (aparência), desconfiamos de contaminação da ração. Os exames laboratoriais feitos após as mortes confirmaram outras manifestações compatíveis com envenenamento por fungo. Uma tristeza — lamenta o veterinário.
A reportagem teve acesso a duas necropsias de animais diferentes, feitas por dois laboratórios, um público e outro particular. Os donos dos cães pediram para que os nomes deles fossem omitidos. Os exames post-mortem de um dos animais foram feitos pelo Axys Análises, um estabelecimento privado.
O outro teste, em outro cão, foi feito pelo setor de Patologia Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele também apresentou olhos e pele amarelados, sangue nas fezes e falta de apetite. Morreu em dois dias. Os patologistas localizaram também três úlceras estomacais, que provavelmente causaram hemorragia. O diagnóstico foi de úlcera gástrica perfurada e insuficiência hepática crônica, provavelmente causadas por aflatoxina. A aflatoxina é uma toxina produzida por um mofo que aparece em grãos colhidos e armazenados em locais úmidos.
O caso de Viamão foi revelado a GZH pela protetora de animais Regina Becker Fortunati, ex-deputada, para quem chegaram as queixas dos tutores dos bichinhos.
Os responsáveis pelos cães estão inconsoláveis. A funcionária pública aposentada Sandra Mara Kischeloski perdeu três animais intoxicados, que estavam no abrigo: Camomila, Flora e Quindim.
— Eram todos vira-latas, mas estou muito abalada, choro ao ver as fotos deles. Recolhi do abandono, tratei, encaminhei para o abrigo e acontece isso...Desconfiamos de leptospirose, jamais da ração, mas era a comida mofada.
A veterinária Andréa Lumertz Saffi perdeu quatro cães no abrigo de Viamão, que tinham sido adotados por ela e pela irmã, Kelly. Encaminhou para o abrigo porque ela já não tinha espaço em sua clínica. Ela dava contribuição financeira para que os cachorros fossem cuidados.
— Está comprovado que é a ração. Agora tem de saber se o mofo aconteceu no armazenamento ou na fabricação — comenta Andréa.
O dono do abrigo de cães encaminhou a ração dada aos que morreram, da marca Bocão, ao Laboratório de Análises Micotoxicológicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Os testes apontaram presença de aflatoxina em duas amostras, de uma ração comum e uma premium, conforme análise de veterinários.
Contraponto
O que dizem os fabricantes da ração Bocão:
Iago Pereira, advogado da Andrealan Nutrição Animal, informa que a empresa recomenda a suspensão imediata do consumo da ração em todos os casos relatados, assim como sua comercialização e a distribuição dos lotes de produção. Ele diz que a indústria realiza um "rigoroso processo de investigação" quanto à suposta relação de consumo das rações com os fatos noticiados e presta informações às autoridades competentes.
Pereira reclama de não ter tido ainda acesso aos inquéritos que tramitam a respeito das mortes de cães e vai pedir isso às autoridades. Ele reafirma as "boas práticas" da indústria e pede que, caso qualquer consumidor tenha verificado alguma anormalidade após o consumo dos produtos da Andrealan, contate a empresa através do telefone (48) 3657-0051. "Não há utilização de insumos mal conservados, podres, mofados ou em qualquer condição semelhante, em nosso processo de industrialização", conclui o advogado.
Como age a Aflatoxina
Os sintomas de envenenamento por aflatoxina nos animais incluem lentidão, perda de apetite, vômitos, tonalidade amarelada dos olhos, gengivas ou pele devido a danos no fígado e ou diarreia. Todos estes sinais apareceram nos animais mortos em Viamão.
Os animais de estimação são altamente suscetíveis ao envenenamento por aflatoxina porque, ao contrário das pessoas, que comem uma dieta variada, os pets geralmente ingerem a mesma comida por longos períodos de tempo.