Quando o assunto me vem à cabeça, dá quase medo: aquelas previsões de uma sociedade futurista se nutrindo somente com pílulas e vitaminas líquidas. Já imaginaram a comida se tornando mera conveniência, sem nenhum prazer? Tudo mecânico e padronizado? Sinto desconforto semelhante ao pensar num panorama gastronômico sem diversidade, sem diferenças de estilos, tudo igual. E ao lidar com a hipótese de estarmos num mundo sem nuances climáticas, sem sazonalidade.
Por isso, acho importante marcarmos e vivermos a passagem do tempo. E não deixar de reverenciar que hoje começa o inverno. Ainda que em muitos pontos do país haja pouca diferença entre uma estação e outra, aprecio bastante a ideia de um momento dedicado ao frio, ao recolhimento (algo mais perceptível na região sul) e, especialmente, a uma cultura alimentar que valorize a temperatura baixa e suas peculiaridades.
É evidente que podemos fazer certas coisas o ano todo, sem pretextos nem ocasiões especiais. Exemplo? O Rio de Janeiro é quente em todos os meses, e a feijoada não deixa de ser consumida por causa disso. Por outro lado, quero crer que o nosso tradicional prato à base de feijão preto e carnes de porco fica ainda melhor num dia frio. Do mesmo modo que o consumo de vinhos fortificados, conhaque, grappa, parece muito mais natural e condizente com a estação.
Muitos povos (no Oriente, em especial) capricham nas receitas com pimenta justamente para enfrentar o verão: a transpiração provocada pelo ardor ajuda a refrescar o corpo, diante do calor do ambiente. Outros (Norte e centro da Europa, por exemplo), num movimento análogo, comem gordura para se proteger das baixíssimas temperaturas. E aí, dá-lhe creme de leite nas sopas e cozidos, carnes mais fortes, queijos, chocolate – opções que, numa época sem as comodidades domésticas atuais, ajudavam as pessoas a ter energia para tocar a vida enquanto não chegava a primavera (aliás, excelente estratégia, não?).
Sendo assim, reserve um belo queijo serrano, separe um salame colonial, abra aquele vinho com mais corpo (e mais álcool) e faça um brinde ao solstício de inverno.
** Luiz Américo Camargo é crítico gastronômico e autor do livro Pão Nosso
***
Se você gosta de comer e beber bem, e de falar sobre isso, vai gostar também do nosso podcast. O Foodcast é um papo descontraído da equipe de Destemperados sobre gastronomia, dá o play aí!