Um crânio centenário, conhecido como Darcy, que faz parte do acervo do Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM), pode ter sido a base para a primeira reconstrução facial forense de um indivíduo com microcefalia. O projeto foi liderado pelo designer 3D Cícero Moraes, em parceria com especialistas da Malásia, República Tcheca, Austrália e Polônia.
A iniciativa partiu da observação da circunferência reduzida do crânio, que levantou a hipótese de microcefalia, condição que compromete o desenvolvimento cerebral. Cícero, que já havia feito a digitalização do Darcy, em 2013, tinha notado que o padrão do crânio, na parte superior, era "abaixo da média" para um adulto. No entanto, ele foi desencorajado por um especialista de levar adiante sua inquietação.
Em 2023, porém, ao fazer uma incursão para estudos na República Tcheca — em parceria com o departamento de anatomia comparada da Charles University —, deparou-se com crânios com diversas condições genéticas, incluindo a microcefalia. O designer, então, levantou a possibilidade de analisar a estrutura e fazer um trabalho para publicação.
— A universidade cedeu o crânio com microcefalia, que foi a base para fazer a pesquisa, a bibliografia, a literatura acadêmica. Em cima dos estudos, fiz os levantamentos e, quando comparei o que tem na literatura acadêmica com a capacidade do Darcy, percebi que se tratava de um caso limítrofe. Ele está significativamente abaixo da média, o que coloca como uma possibilidade de microcefalia em algumas literaturas — explica Cícero.
A equipe do designer, então, aplicou técnicas de fotogrametria e softwares de código aberto para digitalizar e analisar o crânio de Darcy com precisão, visto que, apenas com a circunferência da cabeça não era possível definir com precisão a microcefalia. O estudo, então, utilizou a metodologia de tripla medição, que combina três parâmetros:
- circunferência craniana
- arco sagital
- arco coronal
— Quando você usa essas três medidas, fica evidente que o Darcy está acima dos dois desvios padrão, o que caracteriza a microcefalia — enfatiza.
Com isso, foi possível estimar com maior precisão o volume endocraniano — dado considerado essencial para o diagnóstico de microcefalia em adultos. Validado em tomografias de pacientes vivos, o método representa uma alternativa acessível e menos invasiva para a prática clínica.
— Por que essa abordagem é importante? Porque ela é fácil de replicar, não tem custo algum e não precisa de um treinamento extra significativo para um profissional de saúde proceder com essas medidas. Então, se for utilizado futuramente, para fazer uma triagem, você consegue levantar casos com potencial microcefalia ou megalencefalia. E aí, após essa triagem, justifica enviar o paciente para o SUS para fazer uma tomografia computadorizada, que custa caro — espera Cícero.
No momento, o estudo está em revisão por pares para publicação em revista científica. A expectativa é que isso ocorra nos próximos meses. Cícero, por sua vez, é amplamente reconhecido por fazer reconstruções faciais de personalidades, como São Tomás de Aquino e, mais recentemente, Ludwig van Beethoven. Além disso, integra três reconhecidas sociedades internacionais de alto QI: a Colloquy Society, a Prudentia High IQ Society e a Poetic Genius Society.
Quem foi Darcy
Registrado como MUHM1752, o crânio Darcy foi doado ao Museu de História da Medicina do RS nos anos 2000 por Olga Schlatter e pertenceu ao médico Gabriel Schlatter, figura importante da medicina no interior gaúcho. Ele usou o item como forma de estudo da anatomia humana no século passado.
De origem suíça, o espécime pertenceu a um homem que faleceu na meia-idade entre o final do século XIX e início do século XX. A reconstrução facial de Darcy permite, além do método novo para identificar a microcefalia, que o público veja um possível rosto por trás do crânio.
— Nós quase nunca pensamos na questão da microcefalia em adultos. Esta reconstrução foi interessante para a gente refletir sobre um indivíduo que viveu um bom tempo, chegou até a fase adulta, e que tinha microcefalia possivelmente desde a infância. É interessante até pensar em como esse homem viveu naquela época, cem anos atrás, com essa condição — destaca Angela Pomatti, museóloga e historiadora do MUHM.