
A mãe da jovem que ficou presa injustamente por seis anos e morreu de câncer dois meses após a absolvição disse que a filha foi uma "guerreira sonhadora". Em entrevista exclusiva à Zero Hora, Claudete Kremer Sott, 51 anos, questionou a conduta dos órgãos públicos com a filha, Damaris Vitória Kremer da Rosa, 26 anos.
— Deveria ter sido diferente. A maior dor não é de ela ter tido um câncer. Câncer pode ser removido, tratado; tem cura, quando tratado de início. Para minha filha, o tratamento foi negado — lamenta Claudete.
Natural de Canoas, a jovem não resistiu às complicações de um câncer no colo do útero e morreu no último dia 26. A doença, já em estágio avançado, foi diagnosticada enquanto Damaris Vitória estava presa.
— Se ela tivesse sido julgada em dois anos, já teria sido absolvida e não teria passado por tudo isso. Quando descobrimos (o câncer), já não tinha mais o que fazer — aponta a mãe da jovem.
Em nota enviada no dia 4 de novembro, o Tribunal de Justiça do RS afirma que "o julgamento dos acusados chegou a ser marcado para 21/08/2024, mas foi cancelado por solicitação das defesas". O Judiciário também afirma que "que não havia demonstração suficiente de a ré estar extremamente debilitada por motivo de doença grave, na medida em que os documentos médicos acostados eram meros receituários médicos (...), sem especificar e descrever qualquer patologia existente e sem trazer exames e diagnósticos" (leia a íntegra do comunicado no final da reportagem).
Segundo Claudete, a filha ficou um ano sofrendo com as dores sem receber tratamento adequado. A mãe ainda alega que a jovem não foi chamada para exames pré-cancer no presídio.
— Outras presas diziam que estava morrendo de dor. Iam lá pedir medicamento e repassavam para ela. Porque não aguentavam vê-la gritando de dor.
Por diversas vezes, a defesa da jovem pediu pela revogação da prisão dela em decorrência da saúde, já que ela apresentava sangramento vaginal e dor na região do ventre. Os pedidos foram negados pela Justiça.
— Eu entrei na Justiça, pedindo para levarem a um ginecologista particular. Dois dias antes, a levaram para o posto de saúde. Quando o médico fez o exame, bateu o pé e disse que ela só sairia dali para o hospital — conta Claudete.
Segundo o Tribunal de Justiça, o pedido de encaminhamento para avaliação médica "foi integralmente acolhido pelo juízo na data de 19/11/2024" e enviado para o presídio onde Damaris estava.
A prisão preventiva foi convertida em domiciliar somente em março deste ano, quando o quadro de saúde de Damaris Vitória se agravou.
— Ela tentou ser forte até os últimos dias, só queria viver. Ela tinha muita fé, muita esperança de viver, cheia de sonhos. Ela saiu de lá, fez a sua inscrição numa universidade. Falava vários idiomas, era muito inteligente — relatou Claudete.
Entenda o caso

Damaria foi acusada pelo Ministério Público (MP) de envolvimento em um assassinato em Salto do Jacuí, no Noroeste:
- Ela era suspeita de participação no homicídio de Daniel Gomes Soveral, em novembro de 2018
- Segundo a defesa, Damaris contou ao namorado que teria sido estuprada por Daniel
- Em retaliação, o namorado teria assassinado Daniel e ateado fogo à vítima
- Damaris Vitória foi presa preventivamente em agosto de 2019
- A Promotoria alegou que Damaris "ajustou o assassinato juntamente com os denunciados"
No período em que ficou presa, Damaris começou a apresentar os problemas de saúde:
- A acusada sofreu episódios de sangramento vaginal e dor na região do ventre
- A defesa pediu a revogação da prisão de Damaris, mas a Justiça negou
- O MP considerou que a alegação era pautada em "mera suposição de doença"
- Segundo a Justiça, não havia "demonstração suficiente de a ré estar extremamente debilitada por motivo de doença grave"
Nos quase seis anos em que permaneceu presa preventivamente, Damaris passou por presídios em Sobradinho, Lajeado, Santa Maria e Rio Pardo:
- Apenas em março de 2025, a prisão foi convertida em domiciliar, em razão do agravamento dos problemas de saúde da mulher
- O caso de Damaris foi a julgamento apenas em agosto
- O júri absolveu a jovem de todas as acusações a ela imputadas (ter matado a vítima e ateado fogo no veículo com o corpo dentro)
Contudo, Damaris morreu 74 dias depois de ter sido absolvida. Ela foi sepultada na última segunda-feira (27), no Cemitério Municipal de Araranguá, em Santa Catarina.
"Nada vai trazer minha filha de volta"
Mesmo antes da absolvição, a jovem acreditava que ainda realizaria sonhos e planos.
— Ela nunca desistiu. Ela disse: "Mãe, eu não vou desistir. Eu passei por tudo isso, mas eu não vou desistir. Eu vou correr atrás do tempo perdido". Ela não conseguiu estudar, coitadinha. Ela decaiu muito. Ela fazia as quimioterapias, a radioterapia, todos os dias — relembrou Claudete.
No hospital, Damaris Vitória conheceu o empresário Allen Silva. Eles mantiveram um relacionamento nos últimos meses de vida da jovem.
— Ele deu muito amor, muito carinho para ela. Uma pessoa muito especial nas nossas vidas. Me ajudou muito — diz a mãe.
Além dos pais e do namorado, Damaris Vitória deixa uma irmã, de 39 anos, e um irmão, de 25. A família pretende entrar com uma ação judicial contra o Estado. O desejo dos pais é buscar a reparação pelo dano causado.
— Nada vai trazer minha filha de volta, mas é algo que a minha filha queria. Por mim, a falta que eu sinto da minha filha não existe dinheiro no mundo que vai compensar. Mas ela já estava preparando tudo, ela achava que alguém tinha que pagar por isso, por essa injustiça. E não é só por ela. Tem outras pessoas lá dentro passando por isso igual — fala Claudete.
O que dizem os envolvidos
Ao longo do processo, foram protocolados pedidos de revogação da prisão de Damaris, que receberam pareceres negativos do Ministério Público e foram indeferidos pela Justiça. Depois da soltura, a defesa ainda solicitou a remoção da tornozeleira da jovem, segundo a advogada Rebeca Canabarro.
— Fiz petições manifestando que ela estava tratando câncer e precisava transitar por hospitais. Ainda, havia a oscilação do peso. Pedi remoção da tornozeleira, mas nenhum desses pedidos foi atendido. Ela foi submetida a raio X, exames, tudo com tornozeleira — relata a advogada.
O Ministério Público afirmou que, "na primeira oportunidade em que foi informada nos autos a doença da ré, não houve comprovação desta informação. Mas, a partir do momento em que a defesa fez o segundo pedido de liberdade, alegando e comprovando a doença, a ré foi, então, solta".
Por meio de nota, a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo, responsável pela administração do sistema prisional gaúcho, afirmou que o atendimento à saúde das pessoas privadas de liberdade "deve ser realizado junto ao Sistema Único de Saúde", cabendo à Polícia Penal o encaminhamento.
Leia as notas na íntegra
Nota do TJ
"Informamos que a ação penal envolvendo Damaris Vitória Kremer da Rosa e outros dois acusados, pelos crimes de homicídio qualificado e incêndio, tramitou regularmente, com a manutenção da prisão preventiva dos réus ao longo do processo, conforme decisões fundamentadas na presença dos requisitos legais.
As investigações indicaram que Damaris teria atuado em conjunto com os demais acusados no planejamento e execução da morte da vítima, sendo utilizada como isca para atraí-la ao local do crime. Após o homicídio, ela também foi denunciada por participação no incêndio do veículo da vítima.
A sentença de pronúncia, que determinou o julgamento dos réus pelo Tribunal do Júri, foi proferida em 23/01/2021. A decisão foi integralmente mantida pelo TJRS em 15/02/2023, reconhecendo a existência de elementos suficientes para a submissão do caso ao Júri, competente para julgar crimes dolosos contra a vida.
A prisão preventiva da ré foi mantida com base na necessidade de garantia da ordem pública e da aplicação da lei penal, considerando, entre outros fatores, sua suposta vinculação a organização criminosa e a dificuldade de localização durante as investigações.
Damaris não era ré primária, tendo sido condenada em 2024, em outro processo, por tráfico de drogas e associação criminosa. A sentença foi parcialmente mantida pelo TJRS em 2025, resultando em pena de 1 ano e 8 meses de reclusão, substituída por penas restritivas de direitos.
A defesa interpôs Recurso Especial, não admitido pelo TJRS, e Agravo ao STJ, que também não foi conhecido. A sentença de pronúncia transitou em julgado em 11/10/2023.
A legislação vigente não estabelece prazo fixo para a prisão preventiva, exigindo sua reavaliação periódica.
No caso de Damaris, foram analisados os pedidos de soltura ao longo do processo, conforme já informado em nota anterior.
Nas datas de 10/11/2023 e 18/03/2024, por ocasião da reavaliação, a prisão foi mantida, pois permaneciam presentes os requisitos legais, até mesmo pelo fato de que a decisão que decretou a segregação cautelar dos réus foi confirmada pelo TJRS e STJ em sede de HC.
No pedido formulado pela defesa da ré em 11/11/2024, em decisão proferida na data de 18/11/2024, o juízo afastou o argumento de excesso de prazo, uma vez que o julgamento dos acusados chegou a ser marcado para 21/08/2024, mas foi cancelado por solicitação das defesas.
Ficou decidido, ainda, que não havia demonstração suficiente de a ré estar extremamente debilitada por motivo de doença grave, na medida em que os documentos médicos acostados eram meros receituários médicos (03, no total, apontando a indicação de ingestão de medicamentos), sem especificar e descrever qualquer patologia existente e sem trazer exames e diagnósticos.
A defesa da ré deu sua ciência à decisão acima na data de 18/11/2024, oportunidade em que reiterou pedido subsidiário para que fosse oficiada à Administração do Presídio Feminino de Rio Pardo (RS), para que promovesse, em caráter de urgência, por meio da Equipe Médica Prisional, uma avaliação clínica das condições atuais de saúde da ré, bem como para informar, também, se a mesma poderia continuar tratamento de saúde adequado no ambiente prisional, sem comprometer o agravamento das suas respectivas enfermidades.
O pedido formulado pela defesa da ré foi integralmente acolhido pelo juízo na data de 19/11/2024, sendo encaminhado o ofício requerido à casa prisional.
Os exames foram acostados aos autos em 20/12/2024.
Em nova decisão proferida em 08/01/2025, foi indeferida a revogação da prisão preventiva, sob o fundamento de que a documentação apresentada pela casa prisional não atestou situação de urgência/emergência quanto à saúde da ré, oportunidade em que se observou que ela estava sendo prontamente atendida pelos profissionais de saúde vinculados ao estabelecimento prisional.
Em novo pedido, apresentado pela defesa da ré em 18/03/2025, após comprovação do diagnóstico médico e da necessidade de tratamento oncológico regular, em decisão proferida no mesmo dia 18/03/2025, foi determinada a conversão da prisão preventiva da ré Damaris em prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico. Quanto à possibilidade de risco relacionado ao uso do equipamento, trata-se de uma avaliação médica, não cabendo ao Poder Judiciário essa análise.
Em 09/04/2025, o juízo autorizou a transferência e o cumprimento da prisão domiciliar pela ré, para a residência de sua mãe, em Balneário Arroio do Silva (SC), e o seu deslocamento até o Hospital São José, Criciúma (SC), para consultas e tratamento oncológico, enquanto persistisse a necessidade.
Não houve interposição, pela defesa da ré Damaris, de quaisquer recursos ou HC em face das decisões acima referidas.
A sessão de julgamento foi realizada em 13/08/2025, ocasião em que a ré foi absolvida pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri."
Nota da Secretaria de Sistema Penal e Socioeducativo
A Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo e a Polícia Penal do Rio Grande do Sul recebem com resignação a notícia de falecimento de Damaris Vitória Kremer da Rosa, egressa do sistema prisional gaúcho.
Damaris deu entrada no sistema prisional em 08.08.2019 para cumprir decreto de prisão expedido pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, sendo posta em liberdade por decisão judicial em 14.08.2025.
Durante o período em que esteve sob custódia da Polícia Penal, Damaris recebeu 326 (trezentos e vinte e seis) atendimentos técnicos, dentre eles 59 (cinquenta e nove) atendimentos médicos de diversas especialidades; 51 (cinquenta e um) atendimentos de enfermagem; 67 (sessenta e sete) atendimentos do serviço social; e 56 (cinquenta e seis) atendimentos psicológicos.
Além disso, Damaris foi encaminhada para internação hospitalar por duas vezes. A primeira, no período compreendido entre 17.03.2025 – 24.03.2025, no Hospital Regional Vale do Rio Pardo. A segunda, entre 24.03.2025 – 09.04.2025 no Hospital Ana Nery, quando recebeu conversão da segregação em estabelecimento de regime fechado para o monitoramento eletrônico, com autorização judicial de deslocamento para tratamento médico.
Cumpre observar que, de acordo com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade, o atendimento médico dispensado à população privada de liberdade deve ser realizado junto ao Sistema Único de Saúde, conforme disposições normativas e regulamentares do Ministério da Saúde e Secretarias Estadual e Municipal de Saúde. A responsabilidade da Polícia Penal no tratamento médico das pessoas custodiadas se restringe ao encaminhamento dos custodiados aos equipamentos do Sistema Único de Saúde e o acompanhamento de custódia, nos casos em que a internação se faça necessária.
Do relato sobre os atendimentos técnicos, sejam eles médicos ou psicossociais, observa-se que, durante todo o período de custódia da Sra. Damaris, a Polícia Penal empreendeu todos os esforços possíveis para fornecer o efetivo acesso ao direito à saúde da então custodiada, fornecendo todo o suporte para que as demandas médicas, psicológicas e sociais fossem atendidas de forma célere e efetiva.

