
Alvo da mais letal operação policial do país, o Comando Vermelho (CV) nasceu do encontro, nas celas úmidas do cárcere, de criminosos comuns com presos políticos do regime militar. Adaptada pela bandidagem, a estrutura estratégica das organizações de oposição à ditadura, com hierarquia horizontal, compartimentação de informações e pulverização territorial sustenta a mais antiga e violenta facção mafiosa do país. Quase meio século depois, o CV atua em 25 Estados, movimentando uma cadeia de ilegalidades com faturamento bilionário.
Tudo começou no complexo penitenciário Cândido Mendes, um presídio erguido em 1884 na Ilha Grande, a maior ilha do Rio de Janeiro, com 193 quilômetros quadrados de área no litoral sul fluminense. Durante o Império, o local se tornou um leprosário, destinado a abrigar pessoas que padeciam de doenças contagiosas, em especial hanseníase.
Apelidado de “caldeirão do inferno” pelo histórico de suplícios e humilhações, o local serviu de base para o clássico Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, em que o escritor revisita os 10 meses em que ficou preso em Ilha Grande durante a ditadura do Estado Novo, em 1936.
Três décadas mais tarde, o golpe militar de 1964 instalou um novo regime de exceção no país. Ativistas de oposição se reuniram em organizações clandestinas e começaram a assaltar bancos para financiar a luta contra a ditadura. Com a suspensão do habeas corpus pelo Ato Institucional Nº5, em 1968, e a edição da Lei de Segurança Nacional, no ano seguinte, os militares ampliaram o encarceramento dos dissidentes.
Para isolar os inimigos do regime, eles passaram a ser enviados para o Cândido Mendes, a cem quilômetros do Rio. Pouco antes do AI5, havia 51 detentos em Ilha Grande. Um mês depois, a população carcerária dobrou, com a chegada de 56 presos políticos.
— Ali se encontraram dois tipos de assaltantes de bancos, os criminosos comuns e os presos políticos, então equiparados pela Lei de Segurança Nacional. Como os políticos eram organizados, reivindicavam direitos, condições mais dignas na prisão, os presos comuns viram como os políticos estavam conquistando melhorias e resolveram se organizar também — conta o jornalista Renato Dornelles, autor dos documentários Central - O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil e da série documental Retratos do Cárcere.
Um dos mentores dos presidiários foi William da Silva Lima, o Professor. Condenado a 95 anos por assalto a banco, extorsão e sequestro, William chegou a Ilha Grande em 1971 e logo se tornou um dos líderes da facção que surgia, inicialmente batizada de Falange da LSN, em alusão à Lei de Segurança Nacional. A partir da convivência com os presos políticos, ele não só aprendeu a conduzir negociações com as autoridades como a criar um código de conduta entre os detentos. Mais tarde, o grupo adotou o nome de Falange Vermelha.
— Não havia regras de comportamento naquela época nos presídios. Um preso desrespeitava o outro. Imagina um pai de família sendo violentado, estuprado. Ou um detento que tinha seus pertences roubados, algo que a mãe trazia numa visita para o filho e, quando ela ia embora, outro pegava. A Falange Vermelha veio para criar leis de convivência, pedir respeito ao preso, isso era necessário — disse William em 2017, em entrevista a O Globo.
Tráfico internacional de cocaína
Com a Lei da Anistia, em 1979, os presos políticos foram soltos. A organização carcerária, porém, já estava sedimentada. Vieram os anos 1980 e uma onda de fugas das prisões. Nas ruas, o agora rebatizado Comando Vermelho cometeu novos assaltos a bancos que garantiram o financiamento para a entrada em um ramo do crime mais lucrativo: o tráfico de cocaína.
A guerra às drogas deflagrada pelo governo dos Estados Unidos contra cartéis mexicanos fez florescer quadrilhas robustas de traficantes na América do Sul, sobretudo na Colômbia, na Bolívia, no Peru e no Paraguai. Essas organizações passaram a usar o Brasil como rota e os morros cariocas, à época já local de abrigo da bandidagem local, como entreposto do tráfico.
Guerra no Rio de Janeiro: o combate ao crime organizado
Parte do carregamento destinado ao mercado americano e europeu ficava no Brasil, o que elevou a capacidade financeira e, como consequência, o arsenal do Comando Vermelho. Aos poucos, a partir do poderio econômico e bélico, a facção se espalhou pelas favelas da cidade. A hierarquia horizontal, sem um comando central e soberano, facilitou a formação de dissidências, entre elas o Terceiro Comando e o Amigo dos Amigos. Guerras por território aterrorizaram o Rio nos anos 1990, quando o Estado atingiu os piores índices de violência.

Nos últimos anos, porém, o Comando Vermelho tem ampliado seus domínios. Conforme o Mapa dos Grupos Armados, estudo que reúne ONGs e a Universidade Federal Fluminense, foi a única organização criminosa a ganhar território no Estado, aumentando em 8,4% as áreas sob seu domínio. Atualmente, domina 51,9% das zonas controladas por grupos armados na Região Metropolitana do Rio.
Sem atuação no RS
No país, o Comando Vermelho só não está presente em dois Estados, Paraná e Rio Grande do Sul. Segundo Renato Dornelles, há uma forte resistência nas facções gaúchas em ceder mercado, território e mão de obra para as organizações criminosas de outros Estados.
Embora a primeira máfia nascida no RS, a Falange Gaúcha, tenha se inspirado no Comando Vermelho, foi só com a ascensão de Dilonei Melara, um dos mais célebres bandidos do Estado, que surgiu uma estrutura organizacional do crime, com comando e regras próprias.
Autor dos livros Falange Gaúcha e Paz nas Prisões, Guerra nas Ruas, Dornelles explica a relação das quadrilhas locais com os bandos de atuação nacional, como o Comando Vermelho e seu congênere paulista, o Primeiro Comando da Capital (PCC):
— Aqui no RS, a Falange Gaúcha surgiu inspirada no Comando Vermelho, mas só pensava no lucro, não se preocupava com os presos. Foi Melara, ao criar Os Manos, que veio com essa filosofia, a partir do controle das galerias nos presídios. O domínio das cadeias é fundamental para uma facção se estabelecer. Mesmo os Bala na Cara, primeira facção surgida nas ruas, só ganhou status de organização criminosa ao controlar suas primeiras galerias. Hoje, nenhuma facção local permite a entrada de rivais. O Marcola, chefão do PCC, esteve preso em Ijuí no início dos anos 2000 e não conseguiu cooptar ninguém. Os Manos até têm negócios com o PCC e os Bala fazem parcerias com o Comando Vermelho, mas sem nenhum controle de mercado, de região ou mesmo dos presídios.











