Em 18 de março, no dia em que completava 21 anos, Raíssa Müller mais uma vez respondeu ao ex-namorado que não retomaria o relacionamento. Por mensagem, desejou que ele seguisse a vida dele, o mesmo que ela tentava fazer nos últimos meses — por fim, bloqueou o contato de telefone.
Um mês depois, na madrugada de 18 de abril, sem nenhuma nova tentativa de reaproximação, Vinícius Britz, 25 anos, invadiu a pontapés a casa na qual a jovem vivia, em Feliz, no Vale do Caí, armado com faca. Além de Raíssa, assassinou o novo companheiro dela, Eric Richard de Oliveira Turato, 24.
— Ele não seguia ela, não fazia esse tipo de coisa que é comum. Trocava mensagens, pedindo para voltar, e ela cortava o assunto. Não tinha histórico de agressão. No dia que invadiu a casa, ela poderia ter fugido pela janela, mas ela foi ao encontro dele, talvez pensou que poderia acalmá-lo. Acho que ela não esperava isso dele — narra a irmã, Maísa Müller, 31 anos.
A suspeita é de que Vinícius tenha invadido o local após ver numa rede social uma foto feita durante um jantar entre Raíssa, Eric e outros dois casais. Na imagem, aparecia a mesa, o balcão da cozinha e a janela, com algumas garrafas de bebidas e cartas. A pontapés, ele teria aberto a porta dos fundos e atacado Raíssa e Eric — um dos casais já havia ido embora, um rapaz permaneceu escondido no banheiro e uma jovem pulou uma janela e pediu socorro aos vizinhos.
Vinicius, que também ficou ferido, chegou a ser hospitalizado e depois foi preso.
— Não sabemos o que ele imaginou. Mas aparentemente tudo foi impulsionado por uma foto em um story no Instagram. Não tinha fotos das pessoas. Ele, até onde se sabe, não sabia do atual namorado. Nem as amigas sabiam do relacionamento — explica Maísa.
O relacionamento de Raíssa e Vinícius durou cinco anos. A família nunca percebeu comportamentos abusivos do rapaz, mas amigas da jovem relataram que ele era ciumento e gostaria que ela parasse de estudar. Foi a estudante de fisioterapia quem rompeu a relação. A jovem trabalhava, planejava comprar um carro e tinha o sonho de formar uma família. Após o fim, o ex passou a fazer contato, insistindo para que voltassem.
Em contrapartida, a jovem, que estava mais retraída durante o relacionamento, parecia mais feliz e menos ansiosa.
— Quando ela terminou, era outra pessoa. Se colocava para cima, ia na academia, ia fazer as unhas. A saudade é muita. É como se fosse arrancado um pedaço do meu coração. Pego as roupas dela, fico cheirando. Não desejo para ninguém perder uma filha tão querida como ela era, tão nova — descreve a mãe, Marcia Elisa Müller, 61 anos.
Ainda no verão, Vinícius descobriu que Raíssa havia organizado um churrasco com amigas, e fez contato afirmando que iria se matar em frente à casa dela e que queria que ela assistisse.
— Ela ficou muito preocupada, nervosa. Na época, entendemos como uma tentativa de chamar atenção. Hoje a gente pensa que foi sinal de alerta. Na época, até chamamos a BM, que conversou com ele, levou para casa. Ela escolheu não solicitar medida protetiva, porque achava que não era necessário — diz a irmã.
Raíssa é uma das 26 vítimas de feminicídio no RS de janeiro a maio deste ano — do total de 31 — que não chegaram a pedir medida protetiva. Zero Hora mergulhou nesses casos para compreender quais fatores impediram as vítimas de conseguirem pedir socorro. Outro aspecto analisado é o perfil dos autores dos feminicídios.
Ao menos 18 deles já apresentavam comportamento ciumento e controlador, em diferentes escalas, e 15 já haviam ameaçado as vítimas, sete delas de morte. Pelo menos nove fizeram chantagem emocional e, dos sete que eram ex, ao menos cinco não aceitavam o término.
— Acho que a gente tem impregnado na sociedade um olhar de que o homem tem posse sobre a mulher. Normalmente o agressor do feminicídio não está preocupado se vai morrer, se vai ficar preso 50 anos, só está preocupado com a posse. Acho que ele teve dificuldade de aceitar que não teria mais ela — diz a irmã de Raíssa, Maísa Müller.
A seguir, veja outros relatos, igualmente devastadores, que ilustram o contexto de relações abusivas que acabaram em tragédia e expõem comportamentos comuns aos autores destes crimes.
Dissimulação
Mãe dedicada de uma menina de quatro anos, Caroline Machado Dorneles, 25 anos, estava ansiosa pela chegada do segundo filho, de quem estava grávida de três meses. Na madrugada de 18 de abril, em Parobé, no Vale do Paranhana, Caroline foi morta a facadas. O ex-companheiro, Carlos Daniel de Oliveira, 24 anos, pai do bebê que ela esperava, entregou-se à polícia no dia seguinte ao crime.
Ao longo de pouco mais de um ano, a jovem manteve um relacionamento conturbado com Carlos, que envolvia brigas, controle, ameaças e agressões físicas. Caroline, que era alegre, sociável, com muitas amizades, mudou de comportamento durante a relação, tornando-se mais reservada e se isolando dos próprios familiares. Os dois tiveram diversos términos e recomeços, em um ciclo violento.
Ele era ciumento e controlador. Não deixava Caroline usar certas roupas ou ter amizades. Queria que ela ficasse em casa. Ele a fez fechar uma lancheria que ela abriu em Parobé porque teria contato com homens. Ele queria que ela ficasse em função dele dentro de casa o dia todo.
ANDREA LIDIANE MACHADO
Mãe de Caroline Machado Dorneles, morta aos 25 anos e grávida de três meses
A jovem decidiu retornar para Novo Hamburgo, sua cidade natal, onde estava montando uma casa. O ex, segundo a família de Caroline, não aceitava o término. Na madrugada de 18 de abril, cerca de uma semana após a última separação, ela foi ao encontro dele. A família acredita que ela foi atraída com a ideia de reatar novamente e criarem o bebê juntos. Caroline foi morta com 19 facadas.
— Ela achava que ele nunca faria mal a ela, especialmente grávida — diz a mãe, Andrea Lidiane Machado, 45 anos.
Abraços no aniversário
Em Viamão, na Região Metropolitana, a técnica de enfermagem Patrícia Viviane de Azevedo, 50 anos, também não suspeitou do comportamento do ex. Na tarde de 18 de abril, ela foi morta a tiros dentro de casa. Apesar de ter rompido o namoro, ela havia permitido que ele permanecesse ali, enquanto não encontrava um lugar para morar. Duas semanas antes, Augusto Santos Silva, 22, havia participado do aniversário dela. Em vídeos registrados pela família, os dois aparecem alegres e trocam abraços.
Ele está no vídeo cantando parabéns para ela, na maior alegria. Isso foi em 5 de abril. Ela estava muito feliz, era vaidosa. É inexplicável. Ela foi pega de surpresa, foi uma morte brutal. Ele simplesmente atirou na cabeça dela.
GILMARA DE AZEVEDO
Irmã de Patrícia Viviane de Azevedo, morta aos 50 anos
Provas exageradas de amor
Zero Hora mapeou outros aspectos envolvendo os autores dos feminicídios. Em sete casos, a reportagem conseguiu confirmar que os agressores não trabalhavam. Ao menos 12 dos autores tinham histórico de uso de álcool ou de entorpecentes e pelo menos 18 já apresentavam comportamento ciumento e controlador, por vezes perseguindo a vítima.
— São várias estratégias de manipulação que um abusador vai praticar, e geralmente é desde o início do relacionamento. Quando se inicia com provas exageradas de amor, a gente chama de love bombing, aquele homem que atravessa a nossa vida, que faz promessas e juras de amor, que rapidamente ocupa todos os espaços de vida dessa mulher, e começa a isolar ela da sua rede de apoio, dos seus amigos, isso já é um grande sintoma — alerta a delegada Tatiana Bastos, diretora do Departamento de Proteção aos Grupos Vulneráveis.
Essa proteção exagerada, acrescenta a delegada, costuma ser confundida com amor e afeto, mas trata-se de um indicativo de comportamento abusivo.
São atos de excessivo controle, muitas vezes confundidos com ciúme, com cuidado, com proteção, como regular roupa, onde ela vai, com quem ela fala, olhar no telefone, controlar os atos dessa mulher, perseguir. Muitas vezes está todos dias esperando na saída do trabalho ou manda reiteradas mensagens e fica um pouco alterado quando ela não atende ou não retorna
TATIANA BASTOS
Delegada de Polícia
Saúde mental
No fim da manhã de 5 de janeiro, Fabiana de Castro Claro, 57 anos, ouviu estampidos vindos da casa vizinha, em Ijuí, no norte do Estado. Na moradia ao lado, viviam o irmão Adoniran de Castro Claro, 52, e a esposa dele, Liane Prauchner, 59. Inicialmente, a irmã pensou que tivesse se confundido com o som, mas passou a suspeitar de que algo estava errado quando o casal não respondeu às tentativas de contato por WhatsApp.
Liane, que era tabeliã, e Adoniran, advogado, foram encontrados mortos a tiros dentro de casa. Segundo a irmã, Adoniran passava por tratamento psiquiátrico para depressão e ansiedade. O casal não tinha histórico de brigas ou relacionamento conturbado.
— Eles nunca brigaram. Domingo tinham costume de caminhar de mãos dadas. Levei até a polícia as imagens de câmeras de segurança com a rotina deles na manhã do dia 5. Em momento algum teve alguma discussão briga. Ela arrumou o café deles, ela fez um carinho nele — narra Fabiana.
A suspeita da polícia é de feminicídio, seguido de suicídio — dos autores dos casos de feminicídio no RS entre janeiro e maio, quatro cometeram suicídio, 23 foram presos e dois seguiam foragidos. Em ao menos três casos há algum relato de questões envolvendo saúde mental, como depressão ou esquizofrenia.
No caso de Adoniran, a família acredita que o advogado tenha sofrido uma espécie de psicose, que desencadeou o crime. Segundo a irmã, ele vinha apresentando comportamentos estranhos, temendo que a casa desabasse e que perdessem tudo. Fabiana crê que o irmão poderia não estar tomando as medicações de forma correta.
— Eles eram muito reservados e não queriam que as pessoas soubessem que ele não estava bem. As pessoas não se dão conta de que muitas vezes problemas psiquiátricos podem desencadear essas tragédias. Tenho acompanhado as reportagens sobre feminicídio no Estado. É assustador o que tem acontecido. Quando vejo, lembro da minha tragédia — afirma Fabiana.
Doenças mentais não são para serem tratadas como coisa 'de quem não tem o que fazer, falta de Deus ou de pegar numa enxada', como dizem. Tem que ser tratada com medicação e acompanhamento psiquiátrico e psicológico.
FABIANA DE CASTRO CLARO
Irmã de Adoniran, autor de feminicídio que se suicidou
O ciclo da violência
As motivações que levam uma mulher a não se perceber vítima de um relacionamento abusivo fazem parte do ciclo da violência. Na fase inicial, ocorrem os comportamentos mais sutis, que muitas vezes não são percebidos como violências.
— Nessa primeira fase do ciclo, que é a tensão, ocorrem as violências psicológicas, silenciosas, muitas vezes invisíveis. A injúria, a violência moral e a violência psicológica são as mais perversas. Se nesse momento a mulher ainda não se perceber, e é difícil se perceber nesse estágio do ciclo, ele vai para a fase da explosão, onde começam as agressões físicas que podem ou não deixar marcas, como imobilizar, segurar a força, o puxão de cabelo, o tapa e outras violências mais graves, que daí a mulher sim começa a perceber que é uma violência — detalha a delegada Tatiana.
Contrapontos
Caso de Raíssa Müller:
Em relação ao réu Vinicius Britz, que foi denunciado pelo Ministério Público em maio deste ano, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul informou que está atuando no caso para "garantir a ampla defesa e o contraditório" do réu e que se manifestará apenas nos autos do processo.
Caso de Caroline Machado Dorneles:
Zero Hora entrou em contato com o advogado Pedro Veber Pereira de Souza, responsável pela defesa de Carlos Daniel de Oliveira, que informou que "não irá tecer considerações neste momento, tendo em vista que o processo está em fase de instrução e buscamos, neste momento processual, esclarecer os fatos em análise".
Caso de Patrícia Viviane de Azevedo:
Segundo o TJ, o acusado Augusto Santos Silva é assistido pela Defensoria Pública do Estado do RS. Em nota, a Defensoria informou que só se manifesta nos autos do processo.
Como pedir ajuda
Brigada Militar – 190
- Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado.
Polícia Civil
- Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas.
- Em Porto Alegre, a Delegacia da Mulher na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
- As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link.
Delegacia Online
- É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.
Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
- Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil.
Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556
- Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).
Centros de Referência de Atendimento à Mulher
- Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.
Ministério Público do Rio Grande do Sul
- O Ministério Público do Rio Grande do Sul atende o cidadão em qualquer uma de suas Promotorias de Justiça pelo Interior, com telefones que podem ser encontrados no site da instituição.
- Neste espaço é possível acessar o atendimento virtual, fazer denúncias e outros tantos procedimentos de atendimento à vítima. Para mais informações clique neste link