
A mulher para quem o advogado Daniel Nardon transferiu milhares de processos após ter o registro da OAB suspenso e se tornar foragido da Justiça diz que não reconhece as movimentações. A prática é chamada de substabelecimento sem reserva e trata-se de uma transferência total dos poderes sobre um processo para outro advogado.
Nardon é investigado por suspeita de liderar um grupo que cometia fraudes em empréstimos contra clientes. Na última quinta-feira (8), foi alvo da Operação Malus Doctor, da Polícia Civil, e desde então está foragido. A seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio Grande do Sul suspendeu de forma temporária a licença de Nardon.
O suspeito transferiu milhares de ações para esta advogada, que não é investigada e pediu para não ser identificada. Ela mora em São Paulo e já havia atuado como correspondente para o escritório de Nardon. A defensora prestou depoimento à polícia acompanhada do conselheiro da OAB Marçal Diogo.
Em contato com a reportagem, a mulher disse que 96 mil processos foram substabelecidos em seu nome, sem que ela tivesse conhecimento do volume de ações. A movimentação teria sido percebida no último final de semana, quando ela entrou no sistema e deparou com milhares de processos com prazo vencendo.
A advogada, que tem como principal atividade profissional um empreendimento em outro ramo, disse "que é humanamente impossível dar seguimento a todos esses processos, uma vez que não disponho de estrutura física nem equipe de advogados para atuar adequadamente em cada um deles".
Ela também afirmou que comunicou a corregedoria do Tribunal de Justiça sobre as movimentações, pedindo uma reversão das transferências de processo para evitar o descumprimento dos prazos (leia a íntegra da manifestação abaixo).
O Tribunal de Justiça já recomendou que os magistrados de segundo grau suspendam movimentações em processos com envolvimento de Nardon. A mesma orientação foi dada pela corregedoria para juízes de primeiro grau, que suspendam liberações de alvarás e regularizem a representação processual.
Entenda as transferências de processos
O substabelecimento sem reservas é um ato em que o advogado transfere todos os poderes da ação para um outro defensor. Existe ainda a possibilidade dessa movimentação ser "com reservas", para atuação específica. Ela ocorre por meio do sistema e-proc, e basta o advogado constituído sinalizar o número da OAB de outro defensor.
A movimentação não é irregular, desde que os clientes sejam informados da mudança da defesa — há casos em que os autores da ação não sabem que existem processos em seus nomes.
Uma das hipóteses para o motivo da transferência é que os processos não fiquem sem advogado e que as partes sejam notificadas. Desta forma, os autores saberiam de ações até então desconhecidas.
Advogado já havia sido indiciado por estelionato
O advogado Daniel Nardon já havia sido indiciado por estelionato em 2023. A investigação foi conduzida pela própria 2ª Delegacia de Polícia — a mesma responsável pela Operação Malus Doctor, na semana passada.
O indiciamento anterior foi encaminhado ao Poder Judiciário em 15 de maio de 2023. Desde então, não houve nenhuma manifestação no processo. O Ministério Público informa que esse caso depende de mais averiguações e está em fase de diligências complementares.
Em agosto de 2024, o advogado de defesa de Nardon se habilitou como procurador para atuar na causa. O processo é público e foi localizado por meio da consulta processual no Tribunal de Justiça.
O inquérito em questão foi aberto por uma requisição do Ministério Público, com a informação de que Nardon estava ajuizando ações com procurações falsas, sem o conhecimento dos clientes. Uma das testemunhas era um ex-funcionário do escritório, que trabalhava captando possíveis clientes. Há relatos inclusive de processos abertos em nome de pessoas falecidas.
Interrogado na época, Nardon negou as acusações e disse que o escritório atuava com ações revisionais. Sobre os processos de pessoas falecidas, alegou que muitos dos clientes eram idosos que morreram durante a pandemia e que o escritório só tomava conhecimento do falecimento durante o processo judicial.
Questionada, a OAB-RS disse que, na época, recebeu ofícios do Poder Judiciário e que foram abertos processos imediatamente após o recebimento. Segundo o órgão, os processos estão em tramitação. A reportagem procurou o Ministério Público e aguarda retorno.
Mais três veículos apreendidos

A Polícia Civil encontrou, na tarde de segunda-feira (12), mais três veículos em nome de Nardon. Segundo o delegado Vinícius Nahan, uma Amarok e duas Land Rovers foram localizadas em uma oficina no bairro Petrópolis.
Conforme Nahan, os carros eram utilizados por outros advogados do escritório para impressionar clientes.
Até o momento, Nardon permanece foragido. Na sexta-feira (9), a defesa confirmou que ele se encontrava em São Paulo. No mesmo dia, a Justiça proibiu o investigado de deixar o Brasil.
Como funcionava o esquema
A operação da Polícia Civil mirou um grupo de advogados suspeitos de fraudar ações judiciais e lesar clientes por meio da contratação de empréstimos bancários. A polícia já identificou 55 vítimas, mas estima-se que cerca de 10 mil pessoas tenham sido lesadas. Os alvos eram, em sua maioria, servidores públicos e aposentados. A movimentação é calculada em R$ 50 milhões.
De acordo com a investigação, procurações judiciais eram fraudadas pelos suspeitos, que contratavam empréstimos em nome de clientes, sem que as vítimas soubessem. O escritório de advocacia captava clientes prometendo questionar, na Justiça, o juro de empréstimos.
Contudo, em vez de receber o valor de eventuais indenizações, os clientes recebiam o valor decorrente de um novo empréstimo, enquanto o escritório ficava com o dinheiro obtido no processo judicial.
Os suspeitos captavam clientes por meio de associações de defesa do consumidor, sendo uma delas coordenada pela irmã de Nardon.
Veja nota da advogada para quem Nardon transferiu processos
"Hoje prestei depoimento ao Delegado Vinicius Nahan, acompanhada pelo Dr. Marçal Diogo, Conselheiro da OAB e plantonista da Comissão de Prerrogativas.
Esclareço que os processos do Escritório Daniel Nardon foram substabelecidos em meu nome, sem que eu tivesse ciência da quantidade de ações envolvidas. Ressalto que é humanamente impossível dar seguimento a todos esses processos, uma vez que não disponho de estrutura física nem equipe de advogados para atuar adequadamente em cada um deles.
Diante da gravidade da situação, comuniquei formalmente a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e confio que providências para que tais processos deixem de estar vinculados à minha inscrição na OAB, tendo em vista a completa impossibilidade material de cumprimento dos prazos processuais estabelecidos.
Reitero meu compromisso com a ética profissional e com o zelo no exercício da advocacia, motivo pelo qual adotei todas as medidas necessárias para informar e buscar a regularização dessa situação."
O que diz a defesa de Daniel Nardon
"O escritório Breier & Advogados manifesta preocupação com a tentativa de criminalização da advocacia no caso do advogado Daniel Nardon, investigado por sua atuação técnica no ajuizamento de ações em nome de seus clientes.
A defesa ainda não teve acesso aos autos da investigação, estando disponível até agora apenas a versão apresentada pela autoridade policial, o que compromete o pleno conhecimento dos fatos, inviabilizando o exercício do contraditório e da ampla defesa.
É fundamental distinguir a advocacia predatória — que deve ser coibida — da legítima atuação profissional. Litigar não é crime. O advogado atua com base na confiança do cliente e nos limites da lei. A imputação penal sem análise judicial e sem contraditório viola frontalmente o artigo 133 da Constituição Federal."