
Dinossauros, Pokémon, a história de Jesus Cristo e dinheiro já estiveram entre os hiperfocos de um menino que chama a atenção nas redes sociais. Murilo tem oito anos e é filho da empresária paranaense Jheniffer Veronica Matos, 33 anos, que compartilha a rotina da família no TikTok e no Instagram.
O termo "hiperfoco" aparece com frequência nas redes sociais, mas o uso pode gerar confusão e levar a diagnósticos inexistentes.
Conforme especialistas consultados por Zero Hora, qualquer pessoa pode ter hiperfoco em algo — ou seja, quando se está muito focado em determinado interesse.
No entanto, em casos como o de Murilo, que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), assim como o de pessoas com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), essa característica assume outros contornos.
— O hiperfoco não é simplesmente gostar muito de uma coisa. Hoje em dia, o uso popular da palavra ficou meio banalizado. Qualquer pessoa que maratona uma série ou passa dois dias lendo sobre um tema pode dizer: "Tô com hiperfoco". Clinicamente, o termo é mais específico. O hiperfoco envolve um padrão de atenção intenso, rígido e de difícil interrupção. É a pessoa que passa horas a fio fazendo alguma coisa que pode ou não trazer prejuízos — explica o psicólogo José Hugo de Siqueira Fernandes, que atua no Centro de Referência do Transtorno Autista, em Porto Alegre.
Segundo a psiquiatra da infância e adolescência Ana Soledade Greff Martins, o hiperfoco também pode aparecer em casos de esquizofrenia e de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). No caso do autismo, a expressão mais utilizada é interesses restritos, como esclarece a médica, que também é professora de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Na TV e no cinema, isso é retratado, por exemplo, na série norte-americana Atípico, na qual o protagonista tem interesse por pinguins. No drama coreano Uma Advogada Extraordinária, a personagem principal tem uma fixação em baleias. O hiperfoco pode estar em coisas inusitadas, mas também naquelas do dia a dia e típicas da idade:
— Mas com uma frequência e uma intensidade muito maior. A pessoa, em geral, vai querer falar só sobre aquele tema, pesquisar sobre aquele tema, se concentrar, ter a sua vida em torno daquele tema — pondera a psiquiatra.
A existência de hiperfoco, por si só, não é um critério de diagnóstico para transtorno. Em alguns casos, o comportamento deve ligar um sinal de alerta, mas também pode servir de estímulo (entenda mais abaixo).
Quando é motivo de preocupação?
A psiquiatra Ana e o psicólogo José Hugo respondem: quando o hiperfoco começa a interferir de forma negativa na vida da pessoa, que passa a não conseguir dar atenção a outras questões e a ter prejuízos nas interações sociais.
— Daqui a pouco está atrapalhando até as relações familiares, porque a mãe não aguenta mais ouvir sobre baleias ou dinossauros o dia inteiro. Ou daqui a pouco, o aluno não deixa o amigo falar sobre dinossauro, porque ele não está falando exatamente o tamanho da unha que tinha ou se tinha pena ou não — exemplifica José Hugo.
"É algo que atrapalha demais"
No caso de Murilo, como lembra a mãe, Jheniffer Veronica Matos, um dos momentos mais difíceis foi quando a família "perdeu totalmente o controle" sobre o hiperfoco do menino em Pokémon.
— Como não sabíamos que era um hiperfoco na época, alimentávamos muito aquilo nele e não sabíamos que estávamos dando '"munição". Ele começou simplesmente a não fazer mais nada da vida, a não interagir — descreve Jheniffer.
Além de TEA, Murilo tem Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e superdotação.
O hiperfoco dele na história de Jesus Cristo foi outro que gerou preocupação na família, por conta da intensidade. Murilo lia toda a Bíblia em questão de horas, brincava de encenar a crucificação e, mais de uma vez, se colocou em situações de risco.
— (O hiperfoco) É algo que prejudica a vida dele. Tem benefícios de utilizarmos como um ponto de estratégia para coisas que ele não faz no dia a dia. Mas, de modo geral, é algo que atrapalha demais a vida dele — argumenta Jheniffer.
A dedicação é tamanha para estudar e se envolver no assunto da vez que o menino cansa e, depois, "não consegue nem ser criança", como conta a mãe.
Por outro lado, a parte boa está em ver o filho estudar sobre "coisas tão grandes". Jheniffer dá um exemplo:
— Ele queria começar a investir na Bolsa de Valores. E ele tem oito anos. Em 30 dias, ele aprendeu isso. A professora me chamou na escola e queria saber de onde o Murilo tinha aprendido tanta coisa, porque ele estava ensinando os colegas o que era Pix, o que era reembolso, o que era bitcoin, o que era criptomoeda.
Apaixonado pela abertura da Columbia Pictures
Na casa da carioca Jaqueline Cirilo de Lima, 37 anos, a clássica abertura da produtora e distribuidora de filmes Columbia Pictures ganhou um significado diferente. Pedro, 17 anos, um dos filhos de Jaqueline, viralizou nas redes sociais ao mostrar o gosto inusitado por imitar a cena. O trecho, que aparece no início de diversos filmes, mostra uma mulher segurando uma tocha, sob um fundo repleto de nuvens.
Após a história de Pedro viralizar, houve até mesmo quem homenageasse o adolescente (veja abaixo).
Pedro foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista por volta dos cinco anos. Com base em experiências relatadas por outras mães, Jaqueline acredita que a brincadeira de encenação da abertura possa ser um hiperfoco do filho, embora ainda sem a confirmação médica.
Ela lembra que, desde pequeno, Pedro mexia na televisão e via a imagem nos filmes.
— Eu coloquei ele na escola e a menina na escola disse que ele tinha uma mania de pedir o desenho da Estátua da Liberdade, porque na época ele não sabia que era a Columbia Pictures. Aí a menina ia, fazia e dava o desenho para ele. Todo dia, ele chegava em casa com esse desenho. Uma vez, ele pegou um pauzinho e fez (imitou a abertura): botou a mãozinha para cima e começou a fazer. Daí que ele começou isso tudo. Dos sete anos para cá, ele começou com isso — conta Jaqueline.
Pedro repete o comportamento todos os dias. Jaqueline vê de forma positiva.
— O que é divertido para ele é para mim também. Se ele está brincando, eu estou feliz. Eu estou vendo ele interagindo. É uma coisa que eu acho maneira, bacana — reforça Jaqueline, que diz ficar preocupada apenas quando o filho decide brincar na rua.
Foi a partir dos seguidores que a família encanta nas redes sociais que a produtora e distribuidora Columbia Pictures notou o gosto de Pedro e o presenteou com itens temáticos. Caderno, blusa e garrafa estiveram entre os mimos.
"Pode ser potente para a vida"
Embora requeira atenção, o hiperfoco em algo pode trazer uma consequência positiva. A psiquiatra Ana destaca que o comportamento pode engajar até mesmo uma possibilidade profissional ou de formação acadêmica.
O psicólogo José Hugo segue a mesma linha, pontuando o conhecimento desenvolvido.
— O hiperfoco em si pode, sim, ser potente demais para a vida, para as relações sociais e para o tratamento, na questão de ser um paciente psicoterapêutico, ser TEA ou TDAH. Por quê? O hiperfoco pode fazer com que você se especialize. E você se especializando, você tem que saber adequar isso aos locais e é assim que se cria, às vezes, daqui a pouco, grupos de estudo, se começa a fazer aulas de música, ir para congressos — completa.
O que fazer quando o hiperfoco for prejudicial?
Quando identificado como prejudicial, a forma de lidar com esse comportamento varia a cada caso, por exemplo, com técnicas que o utilizam como recompensa, tentam o extinguir ou procuram um interesse alternativo.
A orientação é buscar auxílio de psicólogo, psiquiatra, neurologista ou pediatra especializado em comportamento, no caso de crianças e adolescentes.


