
A farmacêutica porto-alegrense Ana Helena Ulbrich, 44 anos, nunca imaginou que o trabalho iniciado nos corredores do Hospital Conceição, na Zona Norte de Porto Alegre, a colocaria, anos depois, ao lado de Elon Musk, Sam Altman e Mark Zuckerberg em uma das listas mais prestigiadas do mundo.
Em 2025, a revista Time incluiu seu nome entre os cem indivíduos mais influentes da inteligência artificial pelo impacto da NoHarm, plataforma que criou com o irmão, o cientista de dados Henrique Dias, 42, para reduzir erros em prescrições médicas. Na lista também aparece o brasileiro Cristiano Amon, CEO da Qualcomm.
Hoje, a solução está presente em mais de 200 estabelecimentos de saúde e é responsável por revisar cerca de 5 milhões de receitas por mês. Entre os parceiros estão hospitais de referência como o São Lucas (PUCRS), o Clínicas e o Ernesto Dornelles.
— É um reconhecimento do trabalho coletivo. Temos doutores, desenvolvedores e profissionais fantásticos. Decidimos juntos os rumos da plataforma. É a vitória de uma equipe unida — afirma Ana Helena Ulbrich, que é cofundadora e diretora executiva da NoHarm.
A semente no Hospital Conceição
A história começou nos corredores do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), onde Ana Helena trabalhou por 10 anos como farmacêutica clínica. Essa rotina da porto-alegrense, que mora desde 2023 em Capão da Canoa, no Litoral Norte, com o marido e os dois filhos, exigia revisar centenas de prescrições em poucos minutos, sem conseguir dar conta da complexidade dos casos.
— Quando percebi que o trabalho que fazia no Hospital Conceição era inseguro para o paciente, vi que, apesar de revisarmos as prescrições antes da dispensação, tínhamos pouquíssimo tempo para essa atividade. E não conseguíamos trazer uma barreira consistente para evitar que o erro chegasse ao paciente e gerasse dano — recorda.
A angústia foi levada para as conversas de família. Henrique, que na época fazia doutorado em ciência da computação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), enxergou na inteligência artificial uma possibilidade de solução.
Do projeto de pesquisa dele nasceu um algoritmo capaz de diferenciar prescrições habituais daquelas fora do padrão, emitindo alertas para que o farmacêutico pudesse agir antes que o erro chegasse ao paciente.
— Aproveitei a oportunidade de desenvolver, com o meu irmão, o trabalho de doutorado dele no Hospital Conceição. Foi a chance de criar algo que pudesse alcançar o Brasil inteiro, quem sabe o mundo também. Sem essa relação próxima com o Henrique, não teria como construir uma ferramenta assim. Juntos, criamos o algoritmo e percebemos que era possível transformá-lo em um sistema, em uma plataforma que não ficasse restrita à pesquisa — explica Ana Helena Ulbrich — explica.
Da pesquisa à startup

Transformar um algoritmo em uma plataforma acessível exigiu apoio do ecossistema de inovação. Em 2019, os irmãos fundaram a NoHarm, instalada no Tecnopuc, parque tecnológico da PUCRS. Ali, a ideia ganhou escala e se consolidou como instituto sem fins lucrativos.
— O Tecnopuc nos ajudou a transformar pesquisa em aplicação prática. E o que aprendi no Conceição me deu visão ampla do funcionamento de um hospital, do controle de infecção ao processo de altas. Isso foi fundamental para criar uma solução completa, voltada para a segurança do paciente como um todo — afirma.
Hoje, a NoHarm integra o hub de inteligência artificial Navi e o Wisidia, também ligados à PUCRS, e reúne uma equipe de especialistas em tecnologia e saúde. O primeiro hospital a validar a solução foi a Santa Casa de Porto Alegre.
Com a mesma equipe de farmacêuticos, a instituição quadruplicou a capacidade de revisão de prescrições. Em um caso emblemático, o sistema bloqueou a prescrição de morfina em dose 10 vezes maior do que a indicada.
— Cada intervenção que bloqueia um erro de prescrição já representa um impacto enorme. Na Santa Casa, nosso projeto-piloto, conseguimos quadruplicar o número de prescrições avaliadas com a mesma equipe. Isso mostra que estamos protegendo mais pacientes e, ao mesmo tempo, aumentando a eficiência e a qualidade do atendimento — resume Ana Helena.
Até aqui, mais de 2,5 milhões de pessoas já foram beneficiadas pela plataforma. Hospitais públicos acessam gratuitamente a ferramenta, enquanto instituições privadas pagam uma taxa simbólica que sustenta o desenvolvimento contínuo.

Conciliar maternidade, hospital e pandemia
Durante a pandemia, Ana Helena enfrentou o desafio de conciliar jornadas no Conceição, maternidade de dois filhos e a construção da plataforma.
— Foi caótico administrar tudo ao mesmo tempo: hospital, pandemia, filhos pequenos e a NoHarm. Teve momentos em que acordei às 5h para reuniões com Portugal, trabalhei no hospital e segui até a noite na startup. Mas conseguimos — relembra.
Ela lembra que um dos maiores momentos de frustração foi quando não conseguiu participar da defesa de tese do irmão porque estava à frente da gestão de estoques de antibióticos no hospital:
— Foi muito triste para mim, mas eu estava lutando para manter o estoque de um antibiótico essencial no Conceição. Eu era responsável por isso e tinha reuniões importantes voltadas a esse objetivo, realmente foi um momento muito difícil.
O reconhecimento na Time

Antes de chegar à lista da revista americana, a NoHarm já havia conquistado prêmios de gigantes da tecnologia — como o Google Latin America Research Awards e o Llama Impact Innovation Awards, da Meta — e recebido apoio financeiro da Fundação Bill & Melinda Gates, além de recursos do BNDES, do CNPq e da organização Umane.
O salto para além das fronteiras brasileiras veio em 2024, quando o site Rest of World publicou uma reportagem sobre a expansão da NoHarm na atenção primária dentro do projeto Juntos pela Saúde, financiado pelo BNDES e pela fundação Umane e gerido pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS).
O veículo, voltado a contar histórias de inovação em diferentes países, deu visibilidade internacional à experiência gaúcha de aplicar inteligência artificial no SUS.
— Foi uma construção. O reconhecimento da Time foi uma surpresa muito grata, que fortalece o projeto. A gente agora está tendo uma visibilidade maior aqui no Brasil e nós nunca investimos em marketing. Acabou que foi naturalmente uma divulgação da nossa ferramenta — afirma.
Desde então, a NoHarm recebeu convites para palestras em Dubai, Egito e Estados Unidos.
— Nós já éramos conhecidos no nicho da farmácia, mas agora temos um reconhecimento mais amplo. Apesar disso, nosso foco continua sendo o Brasil. Temos muitas oportunidades de melhoria no sistema de saúde antes de pensarmos em ampliar a atuação para fora — ressalta.
Propósito acima do lucro
Diferente de muitas startups de tecnologia, a NoHarm optou por não captar investimentos de risco. A decisão foi estratégica para preservar o caráter social da iniciativa e evitar pressões externas.
— Quando você conversa com um investidor, o ideal é que ele compartilhe suas ideias. Mas, na maioria das vezes, o foco está no lucro. Nós queríamos entregar valor ao sistema de saúde, sobretudo oferecendo a ferramenta de graça para o SUS — e isso não combina com a lógica do lucro, ainda mais em um país onde a maioria dos hospitais são públicos — explica Ana Helena Ulbrich.
Transformar a NoHarm em um instituto sem fins lucrativos foi, segundo ela, a maneira encontrada para manter a missão original. Hoje, a sustentabilidade depende de parcerias, editais e da taxa paga por hospitais privados.
— Todos os dias pensamos em como manter a NoHarm de pé, mas sem a obrigação de gerar lucro. Isso nos dá liberdade para preservar o propósito. As palestras que fizemos no Exterior aconteceram muito mais pelo reconhecimento do nosso trabalho do que por qualquer interesse comercial — completa a farmacêutica.
Novos projetos

Atualmente, a NoHarm avança em novas frentes. No Norte e no Nordeste, a plataforma já apoia a regulação de filas para consultas e exames especializados e desenvolve painéis de indicadores para agilizar relatórios exigidos pelo Ministério da Saúde, dentro do projeto Juntos pela Saúde.
Outra iniciativa é a navegação do cuidado, em parceria com a Umane, que busca acompanhar pacientes após internações por doenças sensíveis à atenção primária, como diabetes, enfermidades pulmonares e cerebrovasculares, para reduzir o risco de reinternações.
— Vamos começar o projeto em municípios como Betim, Uberlândia, Uberaba, Pelotas e também Porto Alegre. A ideia é acompanhar o paciente depois da internação para evitar que volte ao hospital. Além disso, queremos identificar as fragilidades da atenção primária que levaram à internação e, a partir disso, propor ações de melhoria — explica Ana Helena.
Com apoio da Fundação Gates, a equipe desenvolveu também um sumário de alta automatizado, que utiliza inteligência artificial para ler as anotações clínicas e produzir um resumo da internação que permita que o profissional da atenção básica dê continuidade no cuidado. Esse sistema será incorporado ao projeto de navegação do cuidado.
— Esse recurso reúne todos os pontos exigidos pelas acreditadoras (entidades autorizadas a avaliar e certificar se as instituições de saúde cumprem os padrões de qualidade e segurança estabelecidos) e permite entender a internação de forma rápida, apoiando o acompanhamento do paciente pela Farmacêutica Navegadora após a alta e a transição para a atenção primária — detalha.
Por fim, para Ana Helena, estar na lista da Time, além de novas oportunidades, trouxe também um peso simbólico:
— O reconhecimento tem um significado especial por ser mulher e estar na tecnologia, na pesquisa e na ciência. Fico muito feliz em representar outras mulheres nessas áreas e orgulhosa por poder inspirá-las a alcançar seus objetivos, sempre com propósito. É isso que me traz felicidade: fazer um trabalho guiado pelo propósito.

