
O termo higiene do sono aparece cada vez mais nas redes sociais e consiste em um conjunto de práticas que visam a melhorar a qualidade do descanso, tornando-o mais eficaz e restaurador. Um dos pilares deste processo é a tão falada diminuição da exposição às telas.
Isso porque ficar assistindo a vídeos no celular até dormir é um hábito cada vez mais comum e até que parece inofensivo. Porém, a exposição constante às telas, especialmente à noite, pode acarretar problemas para o sono e, consequentemente, afetar importantes funções do cérebro, como memória, concentração, atenção, aprendizado e criatividade.
Os celulares, computadores, televisores e tablets, entre outros dispositivos, emitem a chamada luz azul, que faz com que o nosso corpo seja estimulado e, mais do que isso, fique confuso: ele acaba pensando que ainda é dia. Isso interfere na produção natural de melatonina — hormônio responsável por preparar o corpo para dormir —, atrasando seu início e dificultando o adormecer.
O corpo humano realiza a maior parte dos processos de regeneração durante a noite, especialmente durante o sono profundo, regulado pela ausência de luz. Embora algumas espécies sejam noturnas, os seres humanos são biologicamente adaptados ao ciclo claro-escuro do dia. Tais hábitos vêm desde a época das cavernas, quando os antepassados entendiam que, quando o sol surgia, era o momento de caçar, coletar e trabalhar. Os tempos mudaram, mas a herança genética não.
A luz elétrica e a tecnologia das telas vieram para facilitar a vida humana, mas o relógio biológico das pessoas pagou um preço, destaca a psicóloga especialista em sono e sócia da clínica Cronosul, Luciene Garay. O motivo? É necessário um período de adaptação entre o dia e a hora de dormir, que equivale ao entardecer, com redução da claridade e, também, das atividades, para que o corpo compreenda que está chegando a hora de repousar.
Se não existe esse meio-termo, pode surgir a insônia, mal que aflige 73 milhões de brasileiros, de acordo com os dados publicados em 2023 pela Academia Brasileira do Sono. Com esta condição, o adulto, que necessita entre sete e nove horas de sono diárias, pode sofrer de ansiedade, estresse, fadiga e cansaço extremo. Também podem aumentar os riscos de hipertensão, AVC, diabetes, depressão, ganho de peso, além de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer, e demência.
É por isso que os especialistas batem na tecla da importância da higiene do sono. Adotar essas práticas é um esforço válido para garantir uma melhor qualidade de vida, conforme explica a psicóloga do sono Luciene Garay:
— Durante o sono, o nosso cérebro separa quais são as memórias que a gente tem que guardar a longo e a curto prazo. Então, o impacto ocorre na memória, na faxina do cérebro, na regulação do humor e, também, no sistema de defesa do organismo. No nosso corpo, são várias engrenagens trabalhando. Se o sono para de funcionar, as outras engrenagens também não vão conseguir funcionar adequadamente.

Seguindo com a higiene
A qualidade do sono também pode ser obtida por meio de outros hábitos, segundo a especialista da Cronosul:
- Exposição à luz natural: ao acordar pela manhã, é importante abrir as janelas e deixar o sol entrar. Isso ajuda a regular os ritmos biológicos e comunicar para o corpo que o dia já começou e, a partir disso, serão 12 horas de atividades, até o sol se pôr.
- Alimentação consciente: evitar refeições pesadas perto da hora de dormir para não dificultar a digestão e, com isso, gerar uma má qualidade do sono e aumento de peso.
- Evitar bebidas estimulantes depois do meio da tarde: café, chimarrão e certos chás podem influenciar o início e a manutenção do sono. Até mesmo as bebidas alcoólicas, que podem até induzir a sonolência, fragmentam o sono, aumentando despertares noturnos.
- Tentar não levar os problemas para a cama: é uma tarefa difícil, mas importante para adormecer mais facilmente. Fazer uma lista ou organizar a agenda mais cedo pode ajudar.
- Ir para a cama apenas quando o sono chegar: é normal demorar até 30 minutos para adormecer. Porém, se o período for excessivo e causar angústia, não é bom forçar. Ter uma rotina relaxante, com leitura (não em celular, claro), montagem de quebra-cabeças ou beber uma xícara de chá de camomila pode ser reconfortante. Meditação guiada, relaxamento muscular ou respiração diafragmática também podem ajudar.
- Manter uma rotina regular de sono: ir para a cama e acordar em horários similares, mesmo nos dias de folga, ajuda a equilibrar o organismo e o relógio biológico, estabelecendo uma rotina.
- Evitar cochilos prolongados ao longo do dia: dar uma sesteada de até 30 minutos pode ser benéfico. Mas não pode ser mais longa do que isso nem perto da hora de dormir, visto que pode diminuir a chamada pressão homeostática do sono, dificultando o adormecer à noite.
- Praticar exercícios físicos: uma grande aliada na promoção do sono e do bem-estar. Porém, é importante se exercitar entre a manhã e o final da tarde, pois a prática muito próxima do horário de dormir pode ser estimulante para algumas pessoas.
- Evitar medicamentos sem acompanhamento médico: o uso indiscriminado de medicamentos pode produzir efeitos opostos aos desejados. O tratamento para problemas de sono é individual e requer orientação profissional. Inclusive, o consumo de melatonina sem prescrição é desaconselhado pelos especialistas.
Mitos do sono
Nas redes sociais, diversas publicações — especialmente, os vídeos curtos do TikTok — ensinam métodos para higiene do sono, estimulando, inclusive, o uso de melatonina para ajudar na hora de dormir. No entanto, a suplementação da substância deve ser feita com orientação médica, já que sua eficácia só é comprovada em casos específicos, como distúrbios do ritmo biológico.
— A melatonina tem função como um neuro-hormônio de sincronização. A gente diz que ele é associado ao escuro, mas também tem interferências em outros circuitos neuronais e funções hormonais. Não temos muita literatura sobre o uso de longo prazo, especialmente em população que não está indicada para o seu uso — esclarece Humberto Luiz Moser Filho, médico neurologista, neurofisiologista clínico e especialista em medicina do sono.
Existe, também, uma crença de que uma noite mal dormida pode ser corrigida no dia seguinte. Entretanto, Luciene salienta que não é assim que o sono funciona — apesar do descanso, as outras perdas ocasionadas pela insônia não se buscam de maneira retroativa:
— Muito se fala: "Dormi pouco na semana, vou recuperar o sono no fíndi". Só que não existe recuperar sono. Os prejuízos do sono são imediatos. No dia seguinte, tu já vais estar com o humor mais irritado, não vai querer interagir tanto com as pessoas, vais estar com a tensão e a memória mais fracos. Fora que ainda acontecer esse fenômeno do jet lag social, de tentar dormir muito mais horas e desregular o relógio biológico.

Dormindo melhor
Em 2020, a mentora de carreiras Larissa Proença, 28 anos, começou a trabalhar por conta própria e, por isso, muitas vezes, entrava madrugada adentro com seus afazeres. A jovem de Canoas normalizou a situação, por se considerar uma "pessoa noturna" — até que descobriu que não existe esta condição, tratando-se de uma disfunção, inclusive, reforçada pela psicóloga Luciene:
— O nosso corpo não foi feito para dormir de dia. Tem que dormir de noite.
Larissa, que também havia começado a apresentar bruxismo e dor na rosto por não ter um sono tranquilo, decidiu mudar seus hábitos. Após pesquisar sobre o assunto e se aconselhar com sua psicóloga e uma fisioterapeuta da face, passou a adotar algumas práticas da higiene do sono:
— Depois das 22h, assim que eu paro de trabalhar, já deixo as luzes da casa todas indiretas. Não ligo nenhuma luz de teto. Até se eu for cozinhar, ligo um abajur, porque sei que isso faz diferença. Além disso, uso o Kindle para ler até dormir. Assim que me deito, já largo ou nem pego no celular, porque é um buraco negro em que a gente cai.
Larissa também estruturou a sua rotina, adaptando os horários do seu trabalho para que possa ter uma noite de sono com as oito horas necessárias para o seu descanso, sem exigir demais do seu corpo. Assim, ela garante o descanso necessário para que esteja totalmente funcional no dia seguinte. E o Kindle, por sinal, tem ajuste em sua iluminação, um modo noturno, trazendo tons mais quentes, alaranjados, fugindo da fatídica luz azul, que atrapalha o sono.
— Depois de adotar essas práticas, diminuiu bastante as minhas dores de cabeça e o bruxismo. Acordo sem dor na face, na mandíbula, sem dor de cabeça. E eu sou uma pessoa que tem enxaqueca. E, antes, era muita luz de tela do computador, do celular, e isso forçava muito a minha visão, me dando dor de cabeça atrás dos olhos também. Aí, fui tirando tudo isso da minha vida — completa Larissa.
E, caso as práticas explicitadas na matéria não forem o suficiente para auxiliar a dormir melhor, clínicas especializadas podem ajudar a diagnosticar quais são os hábitos que estão causando os transtornos do sono. Inclusive, uma importante aliada é a actigrafia, que é um exame que usa um dispositivo semelhante a um relógio de pulso. Com ele, é possível monitorar os padrões de sono e vigília ao longo de, aproximadamente, duas semanas.
A ferramenta registra atividades como movimentos, temperatura e exposição à luz, ajudando a identificar distúrbios do sono como insônia e problemas no ritmo circadiano — mecanismo interno que está presente em todos os seres vivos e mantém o corpo humano funcionando dentro de um cronograma, dia e noite, onde quer que a pessoa esteja.
— A nossa qualidade de sono diz respeito não só a quantidade, mas a qualidade, a regularidade do nosso sono. Ela vai cursar um impacto direto na qualidade de vida. Então, o sono deve ser priorizado em todos os indivíduos para que o cérebro possa exercer, na sua plenitude, todas as suas funções cognitivas — complementa o doutor Humberto.




