
Antes da chegada do inverno, o Rio Grande do Sul enfrenta sobrecarga da rede de saúde por conta de doenças respiratórias. Unidades de saúde da Capital chegaram a operar com 300% de lotação.
Na manhã desta sexta-feira (6), havia 4.413 leitos SUS ocupados na Capital, conforme o painel de monitoramento em tempo real da prefeitura. Alguns estabelecimentos de alta complexidade chegam a operar com o dobro da capacidade.
A pior situação até as 11h desta sexta era na Santa Casa de Porto Alegre, que contabilizava 84 leitos ocupados em sua emergência, sendo que a capacidade operacional é de 28 — o equivalente a 300%. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre enfrentava superlotação de 242%.
Já o Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) registrava ocupação de 200%, e o Hospital Nossa Senhora da Conceição, de 153%.
O que leva Porto Alegre e Região Metropolitana a enfrentarem essas dificuldades? Zero Hora ouviu pesquisadores, profissionais da saúde, representantes de entidades médicas e da prefeitura para entender como se chegou até aqui e o que pode ser feito. A Secretaria da Saúde do Estado não quis se manifestar nesta reportagem.
Entraves para o aumento de leitos
Conforme a professora Daniele Escouto, da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a quantidade de leitos é um gargalo que vem dificultando o acesso da população aos serviços de assistência. Porto Alegre teve queda de 5,6% no número de leitos de urgência e emergência em estabelecimentos de saúde em seis anos. Entre os leitos de internação, houve leve alta de 0,5%.
— Abrir um leito envolve toda uma estrutura que precisa ser trazida junto: recursos humanos, exames, medicamentos, procedimentos. Isso gera mais custos, e temos um SUS que há muito tempo não tem reajuste nos repasses. Com isso, em vez de crescimento, temos uma estagnação — diz a médica, que atua no Hospital São Lucas da PUCRS.
Para Daniele, dois fatores ajudam a explicar a situação na saúde na Capital: a dificuldade no giro de leitos (quando um paciente fica mais tempo internado e não dá lugar a outro) e o aumento da quantidade de pacientes doentes precisando de atendimento. Em maio, o Rio Grande do Sul registrou o maior número de hospitalizações por influenza nos últimos anos.
— São mais pacientes necessitando do sistema, seja por estarem mais doentes, seja por deixarem de fazer parte de convênios. Percebo, como médica, uma redução no giro de leitos, uma dificuldade de dar alta, seja pela alta complexidade dos quadros que chegam, seja pela morosidade nos processos vinculados ao SUS — afirma.
Se um sistema de saúde não está organizado para atender os pacientes de baixo risco, que precisam ser atendidos em unidades básicas, pode até ampliar as emergências, mas elas vão se esgotar
CLAUNARA SCHILLING MENDONÇA
Pesquisadora da UFRGS e chefe do Serviço de Atenção Primária à Saúde no Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Problemas na rede básica
Segundo a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Claunara Schilling Mendonça, a superlotação tem a ver com os problemas da rede como um todo. Ela destaca a baixa cobertura na atenção primária à saúde e a terceirização do gerenciamento de unidades básicas de saúde.
— Isso faz com que a população não tenha um serviço de referência para os primeiros sinais e sintomas de qualquer problema, da dengue à síndrome gripal. Se um sistema de saúde não está organizado para atender os pacientes de baixo risco, que precisam ser atendidos em unidades básicas, pode até ampliar as emergências, mas elas vão se esgotar — afirma a médica de família e comunidade, que é chefe do Serviço de Atenção Primária à Saúde no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Abrir um leito envolve toda uma estrutura que precisa ser trazida junto: recursos humanos, exames, medicamentos, procedimentos. Isso gera mais custos
DANIELE ESCOUTO
Professora da PUCRS e médica do Hospital São Lucas
Daniele, da PUCRS, cita o exemplo da hemodiálise: pacientes que necessitam do procedimento acabam buscando o serviço em hospitais por serem mais ágeis, uma vez que centros e clínicas de diálise muitas vezes têm fila de espera maior.
— Precisamos de melhorias na rede básica para que a população possa identificar problemas de saúde mais precocemente. Temos que promover a saúde, e não só pensar em tratar doenças quando elas aparecem. Precisamos de medidas para facilitar que esses pacientes com problemas possam ter acesso aos procedimentos e tratamentos mais complexos, evitando quadros mais graves — argumenta.
Baixa procura por vacinas
As especialistas também citam a baixa cobertura vacinal. Em 2024, a cada cinco pessoas hospitalizadas no RS, quatro não estavam imunizadas para a influenza. Neste ano, até o momento, apenas 41% dos grupos prioritários se vacinaram no Estado.
A situação é mais crítica entre crianças, com apenas 27% de cobertura, e idosos, com 45%. Em entrevista à rádio Gaúcha nesta quinta-feira (5), a secretária da Saúde do RS, Arita Bermann, destacou a importância da vacinação:
— A superlotação não é um caso só do Rio Grande do Sul. A superlotação oriunda de casos de síndromes gripais, gripe, influenza, H1N1, está tendo aumento no país todo. Vários Estados também estão com essa condição, em parte porque a população não está aderindo às campanhas de vacinação. Os municípios estão trabalhando muito.
Giro de leitos reduzido
Porto Alegre se tornou local de referência para pacientes que não encontram atendimento em outras cidades. Nesta semana, mais de mil moradores de outros municípios estão internados na Capital.
Para o assessor técnico da diretoria-geral da Secretaria Municipal de Saúde, João Marcelo Lopes Fonseca, parte do problema se deve a isso.
— Grande parte do nosso problema é o giro de leitos reduzido. São pacientes do Interior que poderiam ter alta em hospitais de menor complexidade, mas não estão indo. Ao ficarem internados aqui, liberam menos vagas. Hospitais do Interior que poderiam segurar pacientes de média complexidade não estão conseguindo fazer isso, e muitos também fecharam leitos — afirma o médico.
Problemas de custeio, baixa cobertura vacinal, impactos da enchente de 2024 e o surto de dengue estão entre os demais fatores citados pelo assessor que agravaram a situação em Porto Alegre nos últimos meses.
— A gente vem tentando acompanhar a elevação natural de demanda desta época do ano, mas partindo de um patamar já muito alto. Em pediatria, por exemplo, temos baixa demanda no verão, normalmente. Neste ano, já vínhamos com uma demanda aumentada. O sistema já estava sobrecarregado há meses — diz Fonseca.
Situação de emergência
Em maio, a prefeitura de Porto Alegre decretou situação de emergência em saúde pública por conta dos casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG), assim como fez depois o governo do Rio Grande do Sul. As medidas buscam acelerar contratações, ampliação de leitos, compras de insumos e reorganização da rede.
A prefeitura lançou a Operação Inverno, com a abertura de cem leitos extras e a contratação emergencial de profissionais de saúde. A Operação envolve investimento de R$ 13,3 milhões para reforçar a rede municipal de saúde neste período. Mesmo assim, o cenário para as próximas semanas é preocupante.
— Tem sido uma corrida, mas não estamos conseguindo alcançar totalmente o objetivo, que é ter um sistema de saúde adequado para a população. Todas as medidas possíveis vêm sendo tomadas, e são muitas. Mas elas não parecem estar sendo suficientes para acompanhar esse quadro sistêmico que estamos enfrentando — ressalta Fonseca.
O que pode ser feito?
O quadro de superlotação é generalizado em Porto Alegre. O problema é observado em todas as portas de acesso da população à saúde, incluindo não somente emergências hospitalares, mas também os prontos atendimentos.
De acordo com o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade, o cenário era previsível, uma vez que havia tendência de superlotação desde o início do ano.
— Não dá para dizer que somente fatores externos e não esperados, como SRAG e dengue, foram os responsáveis. Tivemos taxas acima de 100% de lotação nas emergências há meses, desde fevereiro. Precisamos ampliar a capacidade instalada de leitos hospitalares e qualificar cada vez mais os profissionais, sobretudo médicos de família e comunidade — destaca.
Trindade defende que as medidas de ampliação da rede deveriam ter sido tomadas com maior antecedência, e não de forma emergencial. Para o Cremers, além de aperfeiçoar a estrutura, é necessário investir em recursos humanos e nas campanhas de vacinação.
Para o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Marcelo Matias, a falta de recursos contribuiu para desgastar o sistema de saúde, não somente na Capital, mas na Região Metropolitana como um todo.
— O programa Assistir (do governo do RS) retirou vultosos recursos da Região Metropolitana, locais que não só concentram volume muito grande de atendimento como também possuem uma centralização dos atendimentos. Houve uma perda grande de recursos. Associada a isso, a enchente produziu um impacto muito grande, principalmente sobre o Hospital de Pronto Socorro de Canoas — afirma.
Na avaliação de Matias, a abertura de novos leitos "em todos os hospitais possíveis" é fundamental, de modo a garantir atendimento a toda a população. Mas é necessário pensar em soluções para que o problema não se repita.
— Precisamos ter um planejamento de longo prazo para que a cada inverno a gente não tenha os jornais cheios de manchetes sobre as dificuldades do atendimento — diz Matias.
Novas medidas
Tradicionalmente, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) e as secretarias municipais adotam medidas para minimizar o impacto do aumento dos casos de SRAG nesta época do ano. Além de ampliar horários de funcionamento das unidades básicas e leitos, foi reforçada a campanha de vacinação contra a gripe e a covid-19.
Em maio, o Estado registrou o maior número de hospitalizações por gripe nos últimos anos. A SES solicitou R$ 26,1 milhões à União para a abertura de 405 leitos hospitalares pelo SUS para pacientes adultos e pediátricos.
Também foi anunciado reajuste no repasse do programa Assistir. Serão destinados R$ 39 milhões anuais a mais para 28 hospitais de 20 municípios da Região Metropolitana. A medida leva em conta não somente a inflação, mas também o aumento na produção de serviços hospitalares.
Com isso, os recursos repassados à rede hospitalar da região saltam de R$ 369 milhões para R$ 408 milhões, incremento de 10,6%. No início de 2024, houve ampliação de 20% do valor repassado por meio da iniciativa, conforme informado pela SES.
Ampliação dos atendimentos

Para reduzir as filas de espera nas emergências, a prefeitura da Capital promove a abertura de unidades básicas nos finais de semana. O horário de atendimento é das 10h às 19h para casos de baixa e média complexidade.
Já o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) anunciou a ampliação do horário para consultas, exames e cirurgias eletivas para o turno da noite em quatro hospitais da rede: Conceição, Criança Conceição, Cristo Redentor e Fêmina. Os estabelecimentos passam a operar também no turno da noite de segunda a sexta-feira, das 19h à 1h, e aos sábados, das 7h às 19h.