
O uso de dispositivos inteligentes está longe de ser novidade na área da saúde. Dados geram informações e insights sobretudo a respeito das condições físicas dos indivíduos, mas também têm demonstrado potencial na saúde mental, por meio da fenotipagem digital. Além disso, há uma perspectiva promissora na geração de impactos em previsão e intervenção — e em integrar a próxima era da psicopatologia.
Fenótipo são as características observáveis de um indivíduo — o fenótipo digital, portanto, são as características (que incluem dados) e comportamentos ligados ao ambiente digital, segundo Aline Zimerman. Ao lado de outros especialistas, a psicóloga gaúcha discutiu o futuro da saúde digital em um painel no Brain Congress — Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções, em Fortaleza (CE), nesta sexta-feira (20).
Um dos pioneiros na área, o epidemiologista canadense e professor de medicina na Harvard Medical School John Brownstein queria entender formas inovadoras de diagnosticar e tratar pacientes. O especialista voltou-se ao Twitter para predizer insônia baseado nos horários de publicações e conteúdos.
Avaliou, então, que o mecanismo poderia ser utilizado para entender mais sobre o transtorno bipolar com base na frequência de publicações — possivelmente identificando episódios antes mesmo de a pessoa perceber. Agora, a psicóloga e o professor lideram uma iniciativa de fenotipagem digital da Sociedade Internacional de Transtorno Bipolar.
Na área da psicologia, os dados são subjetivos, baseados em autorrelato e episódicos. Para Aline, a solução para esse problema está nos smartphones.
— Os smartphones são a janela do cérebro. Eles nos dão muitas informações — afirmou.
Os celulares conseguem medir dados como mobilidade, tempo de sono, atividade física, humor e sociabilidade e fornecer análises.
— Por que é importante isso? Porque conseguimos entender melhor como é que o que a gente faz ou não faz se relaciona com o que estamos sentindo — explicou.
O uso da fenotipagem para transtorno bipolar tem aumentado, segundo Aline. Entretanto, poucos estudos avaliam adolescentes — e esses costumam ser autorrelatados, sem dados objetivos. Pesquisas com adolescentes indicam que, de modo geral, uma menor mobilidade está mais associada a sintomas depressivos, assim como menor tempo em contato com pessoas no celular e dormindo. A baixa qualidade dos trabalhos está ligada ao pequeno tamanho amostral, segundo a pesquisadora.
Estudos gerais sobre fenotipagem digital já publicados incluem predição de risco, predição de resposta de tratamento e predição de sintomas — ao identificar o conteúdo e a emoção na fala das pessoas, identifica quais estão mais ou menos deprimidas, sem levar em consideração, porém, o contexto individual.
Há um paradoxo da saúde mental digital, segundo Aline: apesar das novas tecnologias, os desfechos não melhoram. De acordo com a pesquisadora, as lacunas estão relacionadas à baixa amostragem de trabalhos de fenotipagem, sobretudo quando se trata de adolescentes. Isso resulta em falta de representatividade, previsões pouco confiáveis, modelos muito específicos para determinados grupos e baixa utilidade clínica.
Para alcançar maior validade clínica, é preciso validar no mundo clínico real, identificar ferramentas engajantes, validar com populações diversas, integrar metodologias, definir parâmetros para intervir e integrar em prontuários, conforme especialistas consultados pelos pesquisadores.
O objetivo é expandir o campo da fenotipagem digital no Brasil, segundo Aline. Por ser o país que mais envia mensagens de áudio e ter utilização massiva do aplicativo WhatsApp, os pesquisadores identificaram uma janela de oportunidade para conduzir estudos por meio de um chatbot. A ideia é entender, via informações e áudios, como adolescentes se sentem.
Os estudos liderados por ela e Brownstein ainda estão em andamento e vão avaliar dados multimodais, de modo a tentar entender a influência de atividade física e sono nos sintomas depressivos, por meio de padrões observados.
Alguns ramos da medicina já observam dados gerados pelos dispositivos inteligentes em busca da previsão de desfechos futuros, lembrou Aline. Essa é a esperança dela em relação à psicologia, com alertas sobre potenciais episódios futuros, possibilitando intervenções:
— Meu sonho é que a gente consiga não só identificar o que está acontecendo hoje, mas que, de repente, o nosso celular possa dizer sobre o futuro.
Complexidade
No mesmo painel, Pedro Neto, psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), abordou a complexidade da relação entre o uso de telas e a saúde mental e enfatizou a necessidade de metodologias de pesquisa mais robustas para entender essa conexão antes de associá-las diretamente à crise de saúde mental.
A análise de fatores como o tipo de uso e os padrões de sono pode ser mais relevante do que o tempo total de tela, ponderou Neto. Os dados de monitoramento podem ser utilizados para guiar intervenções na prática clínica, baseando-se em indicadores como sono e passos, antes da prescrição de medicamentos, por exemplo.
A identificação de emoções e previsão de desfechos com base na análise da fala e do discurso também foi abordada no painel por Natália Mota, psiquiatra, neurocientista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com base em modelos matemáticos, um estudo observou que indivíduos com risco de transtornos mentais tendem a usar mais palavras emocionais negativas e demonstram menor conectividade na fala fora do ambiente digital.
*A repórter viajou a convite do Congress on Brain, Behavior and Emotions 2025