Com poucos ou nenhum sintoma relatado, a infecção por coronavírus em crianças era, até então, pouco conhecida e, muitas vezes, subestimada. No entanto, um estudo feito em hospitais afiliados da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, trouxe novas informações a respeito da carga viral em crianças e da capacidade de transmissão do vírus que elas têm. Conforme o texto, publicado nesta quinta-feira (20) no The Journal of Pediatrics, os pequenos apresentaram carga viral significativamente maior do que adultos internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) com quadros graves de covid-19.
O médico Marcelo Otsuka, coordenador do Comitê de Infectologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), observa que a ideia inicial de que crianças não eram transmissoras do vírus pode estar relacionada ao isolamento ao qual foram submetidas. Na prática, é difícil analisar o potencial de transmissão com os pequenos fechados entre quatro paredes:
— Geralmente, elas pegam de um adulto que chega em casa e transmite para todos os demais. Aí, é difícil dizer o quanto ela transmite a partir do momento que recebe o vírus ao mesmo tempo que os demais contactantes.
Ainda assim, acrescenta o médico, o trabalho mostra que uma carga viral maior poderia ser indício de que a criança pode transmitir o vírus ao sair do isolamento.
— A gente sabe, do conhecimento dos outros vírus, que as crianças naturalmente são disseminadoras, de uma forma geral. Imaginávamos que elas teriam uma carga viral do coronavírus, mas, no começo, os estudos não mostravam isso, em parte porque elas respeitaram o isolamento. A gente não tinha como ter certeza a respeito disso. E mesmo nos países que retomaram as aulas, a taxa de transmissão estava muito baixa, então, não dava para dizer o quanto elas transmitiam. Mas, por questão de maturação imunológica, era de se esperar que elas tivessem uma carga viral maior, a gente só não conseguia constatar. E, agora, com esse estudo, a princípio, há essa sugestão — conclui Otsuka.
Por outro lado, pondera Fabrizio Motta, supervisor médico do controle de infecção e infectologia pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre, é preciso cautela ao interpretar o artigo. Isso porque ele compara crianças até o segundo dia de sintomas com adultos internados há mais de sete dias em UTIs, ou seja, traça um paralelo de momentos diferentes do contágio.
— Doenças infecciosas costumam a ter carga viral maior no início do que no final. Tem estudos que não mostram diferença disso quando há avaliação de um mesmo momento —defende.
Somado a isso, completa Motta, a carga viral não é o único fator associado à transmissibilidade. De acordo com o médico da Santa Casa, alguns estudos indicam possível relação entre menos sintomas e menor transmissibilidade. As crianças ainda têm volume de ar menor que o adulto, isto é, colocam menos ar para fora.
— Olhar só a carga viral não parece lógico. Me parece que os menores, de cinco a 10 anos, têm capacidade de transmissão mais baixa. Em contrapartida, os adolescentes transmitiriam mais — avalia.
Este não é o primeiro estudo que busca elucidar o assunto. Em junho, uma revisão sistemática de estudos, publicada pelo The Lancet, descreveu que os prognósticos das crianças com covid-19 eram excelentes. Um mês depois, um artigo publicado no The Lancet Child & Adolescent Health, concluiu, com base em dados de grandes centros de saúde europeus, que, normalmente, a covid-19 se manifesta de forma leve em crianças e bebês. Poucos casos graves foram reportados, assim como o número de mortos nessa faixa etária.
A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) destaca que o maior impacto da doença em crianças é indireto, e diz respeito ao acesso ao sistema de saúde e questões familiares: "Enquanto as evidências indicam que o impacto direto da covid-19 na mortalidade de crianças e adolescentes são muito limitados, os efeitos indiretos (como perda de renda familiar) podem ser substanciais e generalizados”.
Por que as crianças teriam mais carga e menos sintomas?
Otsuka explica que, uma das hipóteses está no receptor do vírus nas células humanas, o chamado ACE2, que tem expressão maior em adultos do que em crianças. Outro ponto é que, uma das grandes causas de mortalidade em adultos é a tempestade inflamatória. Ela poderia ser maior por questões de exposição prévia a outros coronavírus e até mesmo em razão dessa resposta exacerbada do organismo por ter mais ACE2.
— Tem várias coisas a serem pesquisadas e entendidas, mas a gente imagina que o grande problema é a resposta inflamatória do indivíduo, e a do adulto parece ser maior — explica Otsuka.
Essa expressão menor do receptor, define Motta, funcionaria como uma espécie de “proteção natural”, fazendo com que as crianças apresentem menos sintomas.
Como fica o retorno às aulas?
O estudo veio à tona em meio à enorme discussão sobre o retorno às aulas presenciais em diversos pontos do país e até mesmo nos Estados Unidos. Depois de criarem cronograma de volta às aulas presenciais, o Estado de São Paulo e o governo de Brasília voltaram atrás nas suas decisões e protelaram o recomeço. Em São Paulo, o governo estadual determinou o retorno a partir de outubro – postergando em um mês a ideia inicial. Já na capital federal, o começo previsto para 31 de agosto segue indefinido.
Em live na tarde desta quinta-feira (20), o governador Eduardo Leite afirmou que a questão do calendário escolar do Rio Grande do Sul segue em discussão. Na próxima terça-feira (25), haverá nova reunião envolvendo prefeitos, especialistas e órgãos de controle, como Tribunal de Contas e Ministério Público.
— Temos especialistas e prefeitos que defendem o retorno e que contestam (este calendário). Vamos continuar debatendo o tema. Não estamos falando de uma imposição de retorno às aulas, estamos tratando sobre retirar a restrição, permitir retorno do município analisado, se for o caso, e com a decisão dos pais. A ideia é dar a oportunidade aos pais que não têm onde deixar as crianças em segurança. Nesta primeira etapa, estamos falando só da educação infantil. As outras etapas de ensino seriam em outros momentos — afirmou o governador.
Na avaliação do médico da SBI, o prejuízo da suspensão das aulas para as crianças é enorme, tanto do ponto de vista do aprendizado quando do social. No entanto, não se pode ignorar o fato de que elas podem transmitir a doença sem apresentar sintomas, o que pode colocar em risco a integridade de idosos que venham a compartilhar a residência.
— De forma geral, isso não depende da criança. O grande problema é, na verdade, o adulto, as pessoas que estão circulando e que estão permitindo que o vírus tenha transmissão muito elevada. Precisamos voltar as aulas? Sim. Temos como voltar as aulas nesse momento em que ainda temos transmissão elevada? Talvez não — destaca Otsuka.
Motta lembra que os países que começaram a retomada das aulas tiveram o pico de casos muito antes do Brasil, logo, já diminuíram a taxa de transmissão:
— Não é logico imaginar que o Brasil vai abrir no mesmo momento que esses lugares.
O consenso, diz o médico da Santa Casa, é que tais atividades só sejam reiniciadas quando a pandemia estiver controlada na região.