Não bastassem a escassez de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), equipamentos de proteção individual, mão de obra qualificada e avanço de infecções em profissionais da saúde, a pandemia impõe mais um problema a hospitais brasileiros: falta de analgésicos, anestésicos e relaxantes musculares para tratar pacientes internados — com e sem coronavírus. Na região metropolitana de Porto Alegre, há hospitais com estoque apenas para os próximos dias.
O drama ocorre no Brasil como um todo e foi elencado como “problema número um” do momento no Rio Grande do Sul pela secretária estadual de Saúde, Arita Bergmann. A falta de remédios leva municípios a suspenderem novas internações, comprarem drogas 400% mais caras e até a buscarem medicamentos destinados, inicialmente, para animais — caso de Canoas.
Segundo a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e a entidade que representa Santas Casas e hospitais filantrópicos gaúchos, a demanda dos últimos três meses por sedativos equivale ao total aplicado em todo o ano de 2019.
Apesar da responsabilidade da compra das substâncias recair sobre os próprios hospitais, há coro na reclamação direcionada ao Ministério da Saúde, responsável por regular os produtos.
Para preservar os estoques, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) passou a orientar, nesta sexta-feira (3), que todos os hospitais públicos e privados gaúchos cancelem cirurgias eletivas (não emergenciais) como saída para preservar estoques. O movimento já ocorria de forma voluntária em algumas instituições.
— Todos os pacientes em estado grave e que forem internados podem ser afetados. O Estado todo está suspendendo cirurgias eletivas. Os estoques estão pequenos e devem durar duas semanas. Isso está afetando todas as regiões e é extremamente preocupante — alerta o vice-presidente da Famurs, Maneco Hassen, que é prefeito de Taquari.
A escassez ocorre em razão do avanço da pandemia: pacientes com coronavírus ficam internados mais dias do que a média em UTIs. Durante esse tempo, usam anestésicos 24 horas por dia para não acordarem e retirarem o respirador artificial, que traz desconforto.
— Se não estiver sedado adequadamente, o paciente sente dor e o respirador não funciona tão bem — explica o médico e presidente da Sociedade de Medicina Intensiva do Rio Grande do Sul, Wagner Nedel.
Face ao problema, prefeituras e hospitais pedem a seus pares remédios “emprestados” — ou seja, envio de carregamento para, mais tarde, devolver a mesma quantidade. O pior cenário do Estado é enfrentado por Canoas, onde novas internações estão proibidas desde quinta-feira (2), após o estoque de algumas substâncias durar apenas dois dias. A cidade possui 90 leitos, dos quais 77 estão ocupados.
Além de consultar 18 prefeituras vizinhas, sem sucesso, Canoas ganhou doses da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da prefeitura de Nova Bréscia. O número não foi suficiente, o que levou o prefeito Luiz Carlos Busato a suspender castrações na clínica veterinária da prefeitura e tomar os mesmos sedativos usados por hospitais para humanos.
— Não temos como precisar o fôlego que ganhamos, mas garantimos o final de semana. A gente se dispõe a buscar onde for preciso — relata Busato.
Cerca de 10 dos 40 hospitais que tratam pacientes com coronavírus e fazem parte da Federação das Santas Casas Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos do Rio Grande do Sul cancelaram cirurgias eletivas para postergar o fim dos estoques.
Dentre as entidades, estão Hospital Vila Nova de Porto Alegre, Santa Casa de Canoas, Hospital Geral de Caxias do Sul e Hospital de Caridade de Ijuí. A lista aumenta diariamente, segundo o vice-presidente da Federação, Luciney Bohrer.
— Não estamos nem com água no pescoço, estamos afogados e tiramos o pescoço para respirar. É uma situação extremamente preocupante, daqui a pouco teremos pacientes sem medicamento. Antes da pandemia, trabalhava-se com a lógica de ter o mínimo de estoque possível: comprava-se para cada 10 ou 15 dias. Mas essa lógica não existe mais, compramos o quanto for possível. Estamos esperando que o Ministério da Saúde faça a importação e distribua — afirma Bohrer.
Mesmo com estoques maiores, grandes hospitais também são afetados. No Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), médicos mudam a dosagem e recorrem a outras classes de medicamento.
— Estamos utilizando estratégias adaptativas, com fármacos alternativos, combinação de drogas e buscando as doses mínimas necessárias endovenosas através de monitorização de atividade cerebral — diz o médico intensivista Fabiano Nagel.
Em Sapucaia do Sul, todos os 17 leitos de UTI estão ocupados e, até a noite de quinta-feira (2), o estoque de alguns sedativos era suficiente para menos de dois dias. Nesta sexta-feira, alguns remédios foram comprados com fornecedores por preços maiores do que os praticados antes da pandemia, garantindo um respiro por sete dias.
O aumento estratosférico nos preços ocorre no mercado — alguns medicamentos ficaram até 400% mais caros, diz o diretor da Fundação Hospitalar Getúlio Vargas (FHGV), Gilberto Barrichello. Ele confessa que gestores temem ser punidos por órgãos de controle em função de comprar drogas em valor muito acima do mercado.
O sedativo Midazolan, por exemplo, foi oferecido por preços entre R$ 10,31 e R$ 41. A entidade conseguiu adquirir lotes com o preço mínimo, mas, como a quantidade foi insuficiente, também comprou doses por valor acima do dobro: R$ 24,20.
— É uma angústia diária e permanente. Nosso dia a dia é sair do hospital sabendo que os estoques estão reduzidos e que precisam ser abastecidos, porque os pacientes estão lotando as nossas UTIs — relata Barrichello, descartando, por ora, a suspensão de eventuais novas internações.
O problema também atinge as instituições particulares, onde há relatos de dificuldade de abastecimento e aumento de preços para a aquisição dos fármacos. Ainda assim, nenhum serviço deixou de ser prestado, garante a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp). A entidade não descarta a importação de insumos, caso a situação se agrave no país, e orienta que as direções hospitalares notifiquem a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) ao identificarem a prática de preços abusivos.
A Cristália, líder de mercado na fabricação de anestésicos e de narcoanalgésicos e responsável por abastecer 95% dos hospitais brasileiros, afirmou a GaúchaZH que a demanda por medicamentos aumentou quatro vezes em comparação ao ritmo antes da pandemia. Para suprir a procura, deixou de exportar para atender ao mercado brasileiro.
A empresa afirmou que está “fornecendo uma quantidade limitada de produtos de forma que os hospitais estejam abastecidos, mas sem grandes estoques, pois nesse caso correríamos o risco de deixar algum hospital sem o medicamento necessário”.
A farmacêutica diz que atendeu a todos os pedidos de compra, fechando junho sem nenhuma pendência e que está preparada para atender à maior demanda. Não respondeu, contudo, ao questionamento sobre o aumento de preços.
Em Novo Hamburgo, dos 57 leitos de UTI listados pelo Estado, 44 estavam ocupados na tarde de sexta-feira (3). Os estoques do Hospital Municipal são suficientes para cinco dias, mas há a expectativa de novas remessas na próxima semana. O secretário municipal de Saúde, Naason Luciano, diz que a suspensão de internações não está no horizonte.
O Instituto de Cardiologia, responsável pela coordenação dos hospitais de Cachoeirinha, Viamão e Alvorada — além de Santa Maria e de uma unidade em Porto Alegre —, traz relato semelhante ao das prefeituras. A situação é crítica, embora a entidade consiga controlar e remanejar o estoque. Não prevê suspensão de internações, assim como em Esteio, onde os medicamentos são suficientes para uma semana.
A situação de São Leopoldo é melhor em relação às cidades vizinhas. O secretário municipal da Saúde, Ricardo Charão, conta que o estoque de medicamentos é suficiente para 30 dias, considerando os 16 leitos de UTI do Hospital Centenário. A prefeitura de Gravataí também relata situação mais confortável em comparação com as demais cidades da região.
O Conselho Regional de Medicina (Cremers) enviou ofício ao Ministério Público Federal nesta sexta pedindo para que o Ministério da Saúde seja adicionado judicialmente para fornecer os medicamentos. Em nota, o Cremers afirma que os médicos devem comunicar o conselho quando da falta desses insumos.
"O Cremers alerta a classe médica que, na indisponibilidade desses insumos, denuncie junto ao Cremers e às autoridades sanitárias, e não coloque em risco seus pacientes, devido à falta de medicações ideais para o ato médico", afirma.
O que diz a Secretaria Estadual da Saúde
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) destaca que começou, nesta sexta-feira, a orientar hospitais públicos e privados a suspender cirurgias eletivas para preservar estoques de medicamentos. O governo diz que não é de sua responsabilidade comprar remédios para hospitais, e sim das próprias instituições, e destaca que o Rio Grande do Sul deve ser contemplado em breve com envio emergencial de medicamentos pelo governo federal. A SES ainda informou a GaúchaZH que o Estado participará de um pregão federal para compra de remédios, de forma emergencial. O governo gaúcho ainda salienta que dobrou a oferta de leitos de UTI em relação a antes da pandemia.
O que diz o Ministério da Saúde
Em nota, o Ministério da Saúde relata que atua com ações emergenciais para a aquisição de medicamentos e que está fazendo remessas aos Estados. No entanto, ao ser questionada, a pasta não informou a programação de envios para o Rio Grande do Sul.
À colunista Carolina Bahia, o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, também não explicou o porquê dessa situação não ter sido prevista no início da pandemia. Mas ressaltou que o ministério deve entregar os medicamentos que estão em falta nas UTIs do Rio Grande do Sul em 15 dias.
Entre as ações listadas pelo ministério, estão a cotação para compra internacional junto à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e a abertura do pregão federal para registro de preços com a participação de estados e municípios. O Rio Grande do Sul vai aderir à ação.