A Parceria Público-Privada (PPP) dos resíduos sólidos de Porto Alegre ainda tem um caminho a percorrer até se tornar realidade, mas as previsões das minutas contratuais já dividem opiniões, sobretudo quanto ao futuro dos catadores que selecionam o lixo reciclável nas unidades de triagem (UTs) cooperativadas. A prefeitura assegura que as associações serão fortalecidas, enquanto os líderes dos trabalhadores temem perder espaço para o investidor privado.
A intenção do Executivo municipal é repassar todos os serviços relacionados aos resíduos sólidos para uma única empresa. A lógica inclui a coleta de recicláveis e orgânicos, transporte, tratamento e correta destinação. A concessionária irá concentrar cerca de 70 contratos, de 40 diferentes prestadores de serviços, hoje vinculados ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), mas terá de manter os convênios com as 17 UTs que fazem a separação dos recicláveis. As cooperativas são integradas por cerca de 500 pessoas de baixa renda, o que faz o debate transitar desde a inclusão social até a eficiência de gestão, o aumento da coleta seletiva e a redução do rejeito que vai para o aterro.
A proposta de PPP foi apresentada em audiência pública em 24 de outubro e, em breve, a documentação da modelagem será encaminhada para fiscalização do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Em uma previsão otimista, o secretário municipal de Parcerias, Giuseppe Riesgo, avalia que o lançamento do edital da concorrência pública, etapa anterior ao leilão, poderá ocorrer em 2026.
Entenda o projeto
A intenção é conceder os serviços por 35 anos, com investimento de R$ 1,33 bilhão na qualificação do sistema. Riesgo destaca que as minutas contratuais trazem a obrigatoriedade de a concessionária manter as parcerias com as UTs. Depois de fazer a coleta seletiva, a empresa terá de dar prioridade às cooperativas na entrega de até 100% do material. A investidora privada somente poderá reciclar por sua conta ou vender o volume que as UTs não conseguirem receber, diz Riesgo.
A proteção do trabalho das cooperativas está consolidada.
GIUSEPPE RIESGO
Secretário municipal de Parcerias
O secretário salientou que, diante dos temores das UTs, foi permitida a possibilidade de elas continuarem integradas ao sistema em contratos diretos com o município. Será opcional fechar acordo com a concessionária. A empresa terá de reformar os galpões das cooperativas e adquirir instrumentos de trabalho.
— Mudanças trazem preocupações, mas vai ser bom para as cooperativas — diz Riesgo.
Lideranças dos catadores têm percepção oposta. A primeira avaliação é de que poderão ser, aos poucos, substituídos pela concessionária ou por terceirizadas. O primeiro motivo para isso é o fato de a coleta indiferenciada, aquela sem separação, que mistura secos e orgânicos, estar entre as prioridades da concessão.
Se tu focas na coleta normal, a tendência é enfraquecer a seletiva, que já está frágil e é o nosso sustento.
PAULA MEDEIROS
Coordenadora do Fórum Municipal de Catadores e Catadoras de Porto Alegre e presidente da UT Vila Pinto, comunidade do bairro Bom Jesus
Embora as premissas contratuais prevejam que 100% da coleta seletiva tem prioridade de entrega às UTs, Paula tem receio de receber cargas elevadas de lixo indistinto, onde larga parcela de resíduo não se presta à reciclagem e vira rejeito, com destino ao aterro. A justificativa dela é de que a rota de distribuição dos materiais coletados seria prerrogativa da concessionária. Riesgo rebate ao dizer que o contrato não prevê envio de coleta indiferenciada às UTs.
Outra preocupação para os cooperativados é a definição de metas contratuais. Na avaliação deles, os indicadores da PPP poderão ser utilizados para descredenciar as UTs por incapacidade. O entendimento é de que há brecha para isso na modelagem.
— A nossa cooperativa vai ter gente sem condição (de atender metas). Trabalhamos com vulneráveis. Tem amputado, pessoas com HIV e problemas psíquicos. Mulheres que trabalham menos tempo porque precisam cuidar de filhos especiais. Parece um cenário para que a gente não esteja preparado — alerta Paula.
Riesgo avalia que o temor é injustificado. Alega que as cooperativas poderão manter os contratos com a prefeitura e que a concessionária não terá autonomia para descredenciar.
O problema da remuneração
O DMLU tem, atualmente, contrato com 17 UTs cooperativadas. O orçamento para custear o serviço de triagem é de R$ 1,77 milhão ao ano. O montante, a partir deste mês, vai aumentar para até R$ 3,7 milhões anuais. Informação do DMLU aponta que, em agosto de 2025, todas as cooperativas somadas receberam R$ 136,9 mil da prefeitura. A título de comparação, se o novo orçamento e fórmula de cálculo estivessem em vigor, e consideradas as mesmas produtividades, o auxílio pago teria subido para R$ 263,8 mil.
Novos contratos entre o DMLU e as cooperativas, com duração de 12 meses e renováveis por até 10 anos, estão em processo de assinatura para atualizar as bases. O valor repassado pelo DMLU para as unidades serve como ajuda no custeio do serviço de triagem. O grosso da remuneração das cooperativas vem da venda dos resíduos ao mercado privado de reciclagem depois de feita a separação e o embalo. A modelagem da PPP traz duas informações relevantes sobre os contratos do DMLU com as UTs: a relação com a concessionária deve garantir condições no mínimo equivalentes e pagamento possivelmente superior.
Para o secretário Riesgo, os indícios apontam para maiores receitas no futuro.
— Hoje temos um sistema deficiente, com muitos contratos de prestação de serviços. Quando unificamos, o ganho de eficiência é grande e sobra dinheiro. Colocamos a obrigação de a concessionária pagar a mesma coisa ou mais. Pelas estimativas, existe condição de pagar mais — aponta o secretário.
Ele reforça a existência de metas de crescimento gradual da coleta seletiva. A tendência, entende Riesgo, é de que aumente o volume de recicláveis disponíveis.
— As unidades serão reformadas. A capacidade de triagem vai ser maior. Aumenta o faturamento — afirma Riesgo.
O trabalho na UT Vila Pinto
Os representantes dos catadores formais, em contrapeso, revelam uma realidade de ganhos ínfimos pelo trabalho. A UT Vila Pinto concordou em abrir os demonstrativos de receitas. Em agosto de 2025, a cooperativa fez a triagem de 53,5 toneladas de resíduos da coleta seletiva, dos quais 38,5 toneladas se tornaram recicláveis comercializados e 15 toneladas viraram rejeito, com destino ao aterro sanitário.
A produtividade levou ao recebimento de R$ 8,7 mil do DMLU como ajuda de custeio. O valor é definido conforme a aplicação de uma fórmula. O material reciclável vendido ao mercado privado, geralmente a atravessadores que, depois, revendem em larga escala para a indústria, gerou receita adicional de R$ 27,7 mil. O saldo do mês alcançou R$ 36,4 mil. O valor deve pagar as despesas e impostos. O que sobrar é partilhado igualmente. Neste mês de agosto, cada um dos 33 associados recebeu R$ 808,40 por um mês de trabalho. Pouco mais de meio salário mínimo por um serviço pesado e fundamental para a sociedade, ressaltam os membros da UT Vila Pinto. As remunerações variam conforme o mês e as características das 17 UTs. Algumas recebem mais e outras menos.
— O entendimento de que se pode viver dos resíduos é ilusão — lamenta Paula.
Os catadores têm diversas reivindicações. Uma delas é ter como ponto de partida a remuneração fixa de um salário mínimo, que poderia ser pago pelo município ou pela concessionária, dependendo da opção de contrato. Outra demanda é de que seja recolhido, sobre a remuneração, a contribuição previdenciária.
— É uma garantia mínima de que o trabalhador pode se machucar ou que a trabalhadora pode engravidar e ter quatro meses de licença. Se nem isso é oferecido, como falar em dignidade — questiona Paula Garcez Corrêa da Silva, assessora jurídica dos catadores.
Solicitação importante envolve o cálculo do valor recebido atualmente junto ao DMLU. Pela modelagem, o método pode ser mantido na relação com a concessionária. A UT Vila Pinto recebeu, em setembro, carga de 41 toneladas. Cerca de 31 toneladas viraram recicláveis comercializados. As 10 restantes foram para o rejeito. O volume que vai para o aterro é fator de desconto sobre o que as UTs têm a receber de auxílio contratual. Pelos acordos novos, as unidades serão pagas pela tonelada de resíduo reciclado. Na prática, isso também exclui o rejeito da remuneração. Existem fatores múltiplos para a geração do descarte. Um deles é motivado por parte da indústria, que barateia custos com embalagens inadequadas para a reciclagem.
Por fim, também há UTs que carecem de espaço ou de capacitação para ampliar o volume de recicláveis triados no meio de lixo mesclado.
— Todos os meses triamos toneladas de resíduos enviados pela população e pelas indústrias que viram rejeito. E não temos remuneração por isso — reclama Paula.


