
O vereador Moisés Barboza (PSDB) protocolou no Legislativo, nesta semana, um projeto de lei que passa a exigir a apresentação de atestado para participação em eventos de corrida de rua em Porto Alegre. A ideia surgiu após a morte do estudante João Gabriel Hofstatter de Lamare, 20 anos, enquanto corria na 40ª Maratona Internacional de Porto Alegre, no dia 7 de junho.
Os organizadores dos eventos argumentam que tal requisito inviabilizaria a participação de parte das pessoas; já representantes da comunidade médica concordam que precisa haver uma avaliação de saúde antes das provas (veja os argumentos de parte a parte abaixo). Barboza diz que, com a proposta, quer "levantar uma discussão" sobre a proteção dos atletas.
— Se tivermos que adaptar (o projeto), se tivermos que recuar, tudo bem. O que eu acho é que não dá para simplesmente ignorar e não ser feito nada. Queremos encontrar um padrão que não inviabilize as corridas, mas que também gere uma proteção e uma conscientização à questão — defende Barboza.
Conforme o projeto, o atestado seria exigido em eventos com percurso superior a três quilômetros. Pessoas com atestado anterior válido (de até 12 meses) já apresentado em outro evento do mesmo organizador não precisariam mostrar uma nova comprovação.
O parlamentar acrescenta que um questionário padrão na hora da inscrição poderia ser uma medida intermediária a ser adotada.
— Não há uma padronização em todas as competições em Porto Alegre. Algumas exigem questionário, outras têm questionários apenas perguntando se a pessoa já correu em outras corridas. Não há um cuidado do ponto de vista de saúde pública — argumenta.
Para valer como lei, a proposta ainda deve ser analisada pelas comissões na Câmara de Vereadores e passar por votação em plenário. Barboza garante que a comunidade médica e a esportiva serão consultadas (veja abaixo o que dizem representantes dos dois grupos).
Vereador comenta críticas à proposta
Em relação a críticas sobre a obrigatoriedade acabar limitando o acesso às corridas, principalmente, para pessoas de baixa renda, o vereador afirma que, embora com demora, os postos de saúde são uma opção.
Outro ponto que levantou comentários nas redes sociais se refere ao fato de que, no ato da inscrição, a pessoa já se responsabilizaria por si própria. Barboza rebate.
— Quantas pessoas em Porto Alegre não sabem que possuem algum problema cardíaco? Muitas. Aí a pessoa que não sabe vai ali, não é apresentado a ela nenhum questionário que a faça pensar se tem ou não. E é o seguinte: tu cobra uma inscrição dela, entrega um colete para ela e ela vai correr? — questiona.
O que dizem os corredores
Um levantamento da Associação dos Organizadores de Corrida de Rua e Esportes Outdoor (Abraceo) contabiliza 10 óbitos durante corridas de rua e treinos no Brasil em 2025. Os registros foram em São Paulo, Ceará, Amazonas (2), Paraíba, Pernambuco, Roraima, Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul.
A entidade ressalta, porém, que "são casos absolutamente isolados", registrados em um cenário em que há "milhares de provas e centenas de milhares de participantes" no Brasil.
O presidente da entidade, Guilherme Celso, afirma que "a exigência legal do atestado traz riscos concretos" à saúde por afastar o público de atividades físicas.
— Primeiro, cria uma barreira de entrada principalmente para pessoas de baixa renda, que não têm acesso fácil ao sistema de saúde. Hoje, conseguir uma consulta com cardiologista pelo SUS pode levar meses. Então, na prática, a lei não vai impedir que eventos aconteçam ou que pessoas corram, ela apenas vai excluir uma parcela enorme da população que mais precisa do esporte. Em vez de proteger vidas, essa medida pode aumentar o sedentarismo e afastar as pessoas da atividade física. E o que mais mata hoje no Brasil não é a corrida de rua, é o sedentarismo, é a obesidade, é a hipertensão — argumenta.
Também como um ponto de atenção, ele cita a questão logística de milhares de atestados terem de ser validados pelas organizações para saberem se correspondem a quem os enviou e para comprovarem em caso de eventual fiscalização.
Para a Abraceo, o mais importante é o atleta conhecer seu próprio corpo e realizar exames periódicos de forma consciente, principalmente os cardiológicos. Neste ano, junto a outras entidades, a associação lançou a campanha Corrida Segura, para reforçar a importância dos cuidados com a saúde. Por parte dos eventos, como complementa a Abraceo, há a necessidade de que estejam bem estruturados, com equipes médicas treinadas, protocolos de emergência definidos, presença de desfibriladores e rotas de acesso rápido para ambulâncias.
Em nota encaminhada para Zero Hora, o Clube de Corredores de Porto Alegre (Corpa) afirmou que entende que qualquer legislação ou normativa que vise o bem e a melhoria do esporte é bem-vinda:
"Sobre o projeto de lei, o CORPA espera ter espaço ao diálogo, juntamente com a participação de outros organizadores, entidades e órgãos envolvidos em eventos da modalidade, para uma construção coletiva e que se reflita em impacto positivo para a comunidade esportiva".
O que dizem os médicos
Segundo o presidente da Sociedade Gaúcha de Medicina do Exercício e do Esporte e representante da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), Márcio Dornelles, existe um certo consenso entre as entidades de medicina do esporte e cardiologia sobre a necessidade de uma avaliação pré-participação. O procedimento vale tanto para amadores quanto para profissionais, principalmente em casos de meia-maratona e maratona.
— Vemos com bons olhos (o projeto), porque sempre achamos que tem que instruir a sociedade, principalmente em fazer uma avaliação pré-participação antes da atividade física, porque, na verdade, ela busca prevenir esse paciente de ter algum problema maior de saúde — argumenta.
Ele explica que essa avaliação, na verdade, é recomendada para todos os esportes a fim de identificar doenças precocemente. O procedimento leva em conta:
- anamnese completa (entrevista clínica na hora da consulta em que são avaliados sintomas, hábitos de vida do paciente, histórico pessoal e de prática esportiva, assim como histórico familiar)
- exame clínico geral, principalmente focado na parte cardiovascular e esquelética (como ausculta de coração e pulmão)
- eletrocardiograma
Caso detectada alguma anormalidade, o médico pode solicitar exames complementares, como teste ergométrico, ressonância e ecocardiograma.
Em casos de exercício de alta intensidade, mesmo com a avaliação, situações de temperatura alta, má hidratação e treino inadequado podem favorecer um mal súbito, embora não seja comum, esclarece.
O chefe do Centro de Arritmias da Santa Casa de Porto Alegre, Carlos Kalil, reforça o posicionamento em relação ao projeto:
— Acho superimportante, na medida em que a maioria das provas hoje requer um pouco mais de esforço físico, um pouco mais de preparo. A maioria, basicamente, deixou de ser recreacional para ser, de alguma maneira, mais competitiva. Todo mundo está querendo ultrapassar seu tempo, ultrapassar o limite.
Sobre fatores que geram maior propensão a mal súbito, fora condições genéticas, ele lista:
- obesidade
- hipertensão
- diabetes
- fumo
- estresse
- histórico familiar
- níveis altos de colesterol
Outros pontos do projeto de lei:
- Segundo a proposta, o atestado deverá ser emitido por médico regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM), declarando aptidão para a prática de atividade física de esforço intenso
- O documento pode ser apresentado em formato físico, no ato da inscrição presencial, ou digital, em inscrições online, devendo ser validado pelo organizador do evento
- O projeto impõe penalidades em caso de descumprimento por parte dos organizadores: advertência escrita na primeira infração e multa de R$ 900. Em caso de reincidência, a emissão de alvará para eventos esportivos ficará suspensa por dois anos