
Em 9 de março de 1865, na primeira manhã de sol após um aguaceiro que já durava dias e tornara intransitáveis as estradas que ligavam o interior ao centro urbano de Pelotas, Thereza de Freitas Lopes deu à luz seu segundo filho na tranquilidade da Estância da Graça, assistida por mucamas e parteiras e por um médico atrasado, que ao se apresentar já viu o trabalho de parto em pleno curso. O
menino, mirrado e estrábico, recebeu o nome de João Simões Lopes Neto. Passados 150 anos desse nascimento, a biografia desse guri, mais tarde autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, ainda suscita acaloradas discussões e sua obra recém começa a ganhar um primeiro - e ainda incompleto - olhar de conjunto.
O biógrafo Carlos Francisco Sica Diniz, que publicou em 2003 João Simões Lopes Neto: Uma Biografia, a reconstrução mais completa da vida do pelotense, aponta que o futuro escritor nasceu meses depois dos primeiros movimentos da Guerra do Paraguai, o maior conflito armado da América Latina.
- Muitos charqueadores emprestaram dinheiro ao Império para financiar a Guerra e libertaram escravos para servirem ao Exército. O avô do escritor, o Visconde da Graça, foi um deles, o que lhe rendeu o título de nobreza. Era dinheiro da indústria do charque, que estava aquecida naqueles tempos e só declinaria a partir dos anos 80 do século 19. Pode parecer paradoxal, mas foi neste ambiente de prosperidade e guerra que o escritor viveu sua primeira infância - pondera o biógrafo.
João Simões Lopes Neto
Arte de Gilmar Fraga

Simões Lopes Neto viveu na Estância da Graça até os nove anos, depois alternou-se entre o campo e a cidade. Aos 11, após a morte da mãe, foi mandado ao Rio para morar com um parente e terminar seus estudos - uma passagem pela então Capital federal da qual se tem muito pouco documentado. Ao voltar a Pelotas, em 1884, Simões Lopes Neto começou a colaborar voluntariamente na imprensa pelotense com poemas, textos e crônicas e a empreender suas primeiras tentativas de estabelecer-se como comerciante e industrial. Mais ou menos na mesma época, fez uma viagem decisiva. Percorreu campos sem fim até a Estância São Sebastião, de propriedade de seu avô e localizada em Uruguaiana. O responsável pelo local era o pai de João, Catão Bonifácio, que vivia lá como um autêntico gaúcho. No caminho e nessa estância, além de ter mais contato com o estilo de vida e com a personalidade do pai, que lhe serviriam de inspiração para alguns personagens dos Contos Gauchescos (Tandão, do conto Juca Guerra, é a referência mais direta ao pai), o escritor também ouviu pela primeira vez o relato oral da Salamanca do Jarau.
Em 1890, engajou-se na sua primeira iniciativa profissional, abrindo um escritório de despachante. Empreendedor, teve grandes ideias e experimentou, com elas, grandes fracassos: foi sócio ou diretor em empreendimentos como uma vidraria, uma destilaria, uma empresa de venda de café e até uma mineradora para explorar prata em Santa Catarina. Um dos negócios mais duradouros foi a fábrica de cigarros Marca Diabo, batizada assim para diferenciá-la das outras, todas com nomes de santos. Neste entremeio casou-se, aos 27 anos, com Francisca Meirelles Leite, a Dona Velha. Neto de um dos homens mais ricos e poderosos da província, Simões Lopes Neto viveu a juventude segura e despreocupada de um herdeiro. Com a morte do avô, em 1893, a vasta herança diluiu-se entre os 22 filhos resultantes dos dois casamentos do Visconde.
Ele escreveu durante toda a vida adulta. No final do século 19, publicou e encenou várias peças, algumas delas com grande sucesso até mesmo em teatros de Porto Alegre. Fez conferências e discorreu sobre uma infinidade de temas nos jornais pelotenses. Mas foi no fim da vida, quando trabalhava como professor e jornalista, que engendrou sua obra maior - os Contos Gauchescos, em 1912, e as Lendas do Sul, em 1913, textos que viu publicados e recebidos sem alarde pela crítica. Morreu aos 51 anos, em 14 de junho de 1916, vítima do rompimento de uma úlcera duodenal que já o castigava há alguns anos.
HISTÓRIA AINDA POR CONTAR
No último dia 2, no Palácio Piratini, o governador José Ivo Sartori, ladeado pelo prefeito de Pelotas, Eduardo Leite, e por entusiastas como o presidente do Instituto que leva o nome do escritor, Antônio Carlos Mazza Leite, assinou o decreto quecria o Biênio Simoniano, para celebrar os 150 anos do nascimento de João Simões Lopes Neto, em 2015, e para relembrar o centenário de sua morte, em 2016.
A ideia é promover uma programação que não apenas comemore, mas contribua para a divulgação da obra do pelotense. É o eco de um movimento iniciado há muito tempo, mas que ganha força lentamente. O primeiro ato desta retomada foi encenado pelo jornalista Carlos Reverbel, que nos anos 1940 mergulhou nos esparsos rastros deixados por Simões para recompor sua trajetória. É dele a primeira biografia do pelotense, Um Capitão da Guarda Nacional: Vida e Obra de J. Simões Lopes Neto.
Em 1949, quando os Contos... e as Lendas... foram publicados em uma edição caprichada da Editora Globo, o escritor voltou a frequentar o universo literário, ainda que timidamente. Foi a partir daí que começaram a surgir os primeiros esforços críticos sobre a obra de Simões. Nomes como Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini e Aldyr Garcia Schlee contribuíram de forma decisiva para o ingresso do escritor no universo acadêmico.
Hoje, uma nova geração de estudiosos trata de rever o material já conhecido e, principalmente, descobrir obras inéditas ou pouquíssimo frequentadas. É o caso de dois textos até então desconhecidos, Terra Gaúcha: Histórias de Infância e Artinha de Leitura, publicados em 2013 pela editora Belas Letras, sob a coordenação do professor da UFRGS Luís Augusto Fischer, que revelam uma face nova de Simões Lopes Neto: seu malogrado projeto pedagógico, que apesar de não ter sido levado a cabo, foi moderno, inovador e teria feito evoluir o sistema educacional brasileiro, caso tivesse obtido sucesso.
Um parêntese é pertinente para tratar deste episódio. Descobertos em circunstâncias fantásticas, os livros abrem caminho para, um dia, editar, finalmente, a obra completa (completa mesmo) de Simões Lopes Neto. O livro Terra Gaúcha: Histórias de Infância, por exemplo, foi encontrado em um baú entregue pela viúva do escritor ao jurista pelotense Mozart Victor Russomano e que, com a morte deste, foi adquirido pelo apaixonado pesquisador Fausto Domingues. O baú ainda está lá. E há material inédito nele.
Com tantas descobertas e com gente nova pensando sobre essas questões, surgem olhares mais abrangentes, que finalmente livram Simões da pecha de regionalista e o posicionam como um intelectual que pensou de forma moderna e progressista o seu tempo. "Em se tratando de atividades ligadas à cultura, é um regozijo para qualquer pesquisador da obra simoniana constatar que o homem que falava da canalização do Arroio Santa Bárbara, da necessidade de uma rede de esgotos efetiva em sua cidade, era o mesmo que escrevia sobre Darwin, que traduzia do francês, que escrevia em italiano e que se correspondia com intelectuais de ponta da época", afirma a professora Heloísa Netto, mestranda em Literatura Brasileira pela UFRGS, que defende em abril uma dissertação que analisa a atuação de Simões Lopes Neto como intelectual e pensador.
Tendo em conta essa nova onda de estudos e olhares sobre a obra de Simões Lopes Neto, volta a pergunta que moveu antigos pesquisadores, como Carlos Reverbel: o que o criador de Blau Nunes tem a nos dizer, 150 anos depois de seu nascimento no remoto interior do Rio Grande do Sul?
- O mérito do Simões é literário. Ele inventou uma arquitetura narrativa capaz de sintetizar elementos que andavam dispersos, como a linguagem oral popular e o luto por um mundo que estava em vias de morrer, dando lugar à modernização. Blau Nunes é uma estratégia genial, pois dá voz natural e verdadeira ao único narrador possível para aquele mundo. Este é o maior acerto do escritor e por isso ele é grande. Mesmo assim, sua crítica ainda é esparsa e parte da sua obra está dispersa. Quando se trata de um escritor maiúsculo como ele, até lista de compras interessa, para compreender seu pensamento - afirma Luís Augusto Fischer.