Um homem não demonstra dor quando é espancado com ferocidade, mas se queixa quando uma mulher tenta limpar as feridas. A tosse costuma indicar uma doença fatal _ dor de cabeça também. A maior parte das pessoas guarda um álbum de recortes, especialmente se algum familiar ou amigo morreu num acidente de circunstâncias misteriosas. Qualquer fechadura pode ser aberta em segundos com um cartão de crédito ou um arame, exceto a porta de um prédio em chamas com uma criança lá dentro.
Recorrendo a cenas batidas do cinema norte-americano, a escritora Cíntia Moscovich divertiu o público que acompanhou a primeira aula da oficina Como Assassinar a Narrativa: Contra os Clichês, realizada ontem à tarde no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo (CCCEV). A autora de Por que Sou Gorda, Mamãe? e Essa Coisa Brilhante que É a Chuva também ilustrou a explanação com lugares-comuns da literatura, como a cena em que o protagonista acorda, vai ao banheiro e, diante do espelho, elabora profundos questionamentos existenciais.
- É a obviedade, a banalidade, a fórmula pronta. O que o personagem faz quando o autor não sabe o que fazer com ele? Olha pela janela. Se for uma história de amor, ele vai ver um casal de namorados. Mas pode ser pior. Nosso herói vai para a janela e não passa ninguém. E ele fica o quê? Meditativo. Ou ainda pior: fica "perdido em seus pensamentos" - exemplificou.
Cíntia faz concessões: em algumas ocasiões, alega ser necessário utilizar as expressões desgastadas.
- Clichê até o Philip Roth usa. Tem vezes em que vamos ter de dizer que choveu torrencialmente - resigna-se.
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Pedimos para Cíntia Moscovich listar 10 clichês, daqueles que afugentam qualquer leitor. São cinco de linguagem e cinco situações-clichê. Confira:
5 clichês de linguagem
- "Dentes brancos como pérolas": seria melhor achar outros predicados na personagem. É interessante que todos tenham dentaduras tão perfeitas.
- "Fazer algo de forma mecânica": personagem com algum drama existencial não presta atenção ao que faz e vira um autômato. Clichê encontrável em 100% de autores iniciantes.
-"E ele a possuiu" (no sentido de penetração em cenas de sexo): é impressionante como, ainda hoje, o ato sexual seja considerado isso, a posse de um pelo outro. Além do mais, é muito feio.
- Ainda falando em sexo. "Membro ereto" ou "membro túrgido" para designar a excitação masculina. Nas mulheres, a alusão à "caverna escura" ou "caverna úmida" costuma aparecer com frequência. Melhor evitar cenas de sexo.
- "Olhar vazio": outro clássico de autores iniciantes. Pode significar várias coisas, mas, geralmente, é vazio mesmo de qualquer sentido.
5 situações-clichê
- Início de narrativa com monitoramento meteorológico-climático ou referências a estações do ano, como "Era um lindo dia de sol" ou "A primavera tinha chegado". É igual a conversa de elevador: completamente desinteressante.
- Porta-retratos pela casa a lembrar de alguém que morreu ou que algum romance foi desfeito. Ninguém mais aguenta tantas fotos pela casa, "bengala" narrativa completamente dispensável.
- Sintomas de doença: em alguma reunião familiar (ou festiva), personagem começa a tossir, pega um lenço (que está sempre lá) e encontra sangue no escarro. Além de ser escatológico, a maioria dos personagens morre mesmo é de câncer. Acho que está na hora de começaram a morrer de outras formas.
- O cenário das narrativas é sempre em cidades glamurosas: Paris, Nova York, Roma. Nenhum romance se passa em Cachoeirinha ou Gravataí. (Chique mesmo é contar uma história bem contada.)
- Os personagens são sempre bonzinhos ou sempre malvados. Não há meio-termo, nada que os faça parecer mesmo com seres humanos. Tudo na narrativa se torna previsível, ainda mais que, como sabemos, o bem sempre vence.