Sinuoso, admirado, às vezes temido e, por um bom tempo, essencial. Esse era o Dilúvio em meados do século 19. Porto Alegre dava seus passos rumo à urbanização, e era às margens do arroio - então fonte de água potável - que parte da população de cerca de 40 mil habitantes se assentava.
Em seu curso natural, o Riacho, Cascata, Riachinho ou arroio da Azenha, como era conhecido, nascia nas serranias de Viamão recolhendo águas caídas dos morros, adentrava Porto Alegre pelos bairros Partenon, Santana e Azenha, serpenteava a Cidade Baixa e lançava-se ao Guaíba nas proximidades do Centro, perto da Usina do Gasômetro.
Um passeio pelas águas sujas e abandonadas do Arroio Dilúvio
Dilúvio é contaminado desde as nascentes, na divisa de Porto Alegre e Viamão
Qualidade da água piora na proximidade com a foz
Conheça histórias que dão vida ao Dilúvio
Espécies animais e vegetais lutam pela sobrevivência
Quem hoje avista a Ponte dos Açorianos, belo monumento sem função prática no cruzamento da Avenida Borges de Medeiros com a Loureiro da Silva, talvez não saiba que, ali por baixo, corria o Dilúvio. Ligação do Centro à Zona Sul, o ponto ficou conhecido como o primeiro local de congestionamento da cidade, já que, sobre as toras de madeira, pipeiros estacionavam suas carroças puxadas a cavalo para coletar a água que seria distribuída aos porto-alegrenses.
Àquele tempo, a burguesia se concentrava nos pontos altos de Porto Alegre, já manifestando interesse pelo desenvolvimento urbano. Nas zonas mais baixas, próximas ao Guaíba, moravam as populações humildes.
- Distribuídas em arraiais nas beiradas do Dilúvio, lavadeiras utilizavam a água cristalina que corria nos fundos de suas casas para remover a sujeira das roupas, enquanto crianças banhavam-se no local para espantar o calor - conta a historiadora Naida Menezes.
Maria Ereci Machado da Silva, 71 anos, recorda o trabalho da avó:
- Muitas senhoras lavavam roupas da alta sociedade no Dilúvio. Elas ficavam em filas para encher os baldes. Depois tinha o ferro a carvão, que elas dividiam para engomar as roupas. E eu fazia as entregas, com a trouxa na cabeça.
Pelo riacho desfilavam, também, pequenos barcos que transportavam, além de pessoas, frutas e verduras às feiras. Os usos do arroio eram tão diversificados que se tornaram preocupação para governantes. Na resolução da Câmara de 26 de janeiro de 1847, consta que a polícia deveria tomar providências para evitar que tomassem banho na Praia do Riacho "quaisquer pessoas, que isso queiram fazer, pois que lavando-se nuas como costumão não só praticão um ato indecente, mas também prohibem que as famílias gozem da fresca na frente de suas cazas".
Uma queda por mês no antigo "arroio da morte"
Ciclovia aproximou população do arroio
Revitalização do arroio esbarra em falta de recursos
Foi por pouco tempo que Porto Alegre enxergou o arroio de frente.
- Na virada do século 19 para o 20, com a abolição da escravidão e a instalação da ordem republicana, a Capital já começava a enfrentar os problemas de uma cidade grande. Dejetos fecais, lixo e sobras eram lançados ao Dilúvio, tornando-o, pouco a pouco, impróprio para o uso da população - explica Fabio Kühn, professor do Departamento de História da UFRGS.
Porto-alegrenses que aproveitaram o arroio mantêm vivas as lembranças. O borracheiro Chacrinha, 85 anos, recorda que, na década de 1940, refrescava-se no riacho:
- A gurizada saía do jogo de futebol nos campinhos da Azenha e se atirava direto na água. Era um tempo muito bom.
A Porto Alegre dos anos 1940 contava com população superior aos 180 mil habitantes. Urgia a implantação de um sistema de esgotos, de iluminação pública e eficaz abastecimento de água. Somando-se a essas necessidades, a série de inundações decorrentes de fortes chuvas obrigaram a prefeitura a reestruturar o arroio, ameaça aos moradores das áreas mais baixas da cidade, principalmente os bairros Menino Deus, Azenha e Santana. Em 1941, a Capital sofreu a pior enchente de sua história. Entre os meses de abril e maio, viu sua região central ficar debaixo d´agua, com mais de 70 mil flagelados sem energia nem água potável.
- Era tanta água que parecia que estava ocorrendo um dilúvio, diziam as pessoas. A partir desta enchente, o nome Arroio Dilúvio se disseminou pela cidade, batizando o curso d´agua para sempre - conta a arquiteta Carolina Burin, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unisinos.
A obra de canalização do arroio tornou-se prioridade para a prefeitura, então no comando de José Loureiro da Silva. Mais de 40 anos depois, na década de 1980, terminava a "cirurgia urbana" que modificou definitivamente a geografia de Porto Alegre. O último trecho a ser finalizado foi o cruzamento da Avenida Ipiranga com a Rua Antônio de Carvalho. Apesar de ter sido projetado como um arroio próprio para diferentes usos pela população - ate hoje as escadarias localizadas em diferentes pontos denunciam o ideal de ter barcos percorrendo seu trajeto -, já nos anos 1970 não tinha mais serventia que não a de escoar esgoto.
Também enriquecendo o Arroio Dilúvio com um suspiro de vida estão as espécies vegetais que o circundam. Remodelado para fazer parte de um ambiente urbano, o arroio pouco conserva de sua vegetação original. É principalmente nas nascentes que se encontram resquícios do que era no passado, com espécies típicas de mata ciliar.
- Dentro do Parque Municipal Saint Hilaire, na porção destinada à presevação permanente, vemos uma paisagem que contrasta muito com o que estamos acostumados. Ali, nas nascentes, a floresta é relativamente bem preservada, o que se pode concluir pela presença de arvores altas e troncos grossos, como a figueira - explica o coordenador do Centro de Pesquisa e Conservação da Natureza Pró-Mata e professor da Faculdade de Ciências Biológicas da PUCRS, Pedro Ferreira .
Já ao longo da Avenida Ipiranga, o que se vê é uma vegetação homogênea, que nada tem a ver com a floresta ribeirinha que um dia já acompanhou o curso d´agua:
- Embora a maioria seja nativa, as espécies que ali se encontram aparentemente foram plantadas para fins de arborização urbana - conclui.
A ilhota de Lupi
Até os anos 1940, o Dilúvio saía da Azenha e percorria a Cidade Baixa, onde, nas palavras do historiador Sérgio da Costa Franco, "começava a descrever extensos meandros. (...) Um destes meandros, imediato à Praça Garibaldi, dava uma volta de tal modo acentuada que quase encerrava uma ilhota no seu interior". Foi na Ilhota, onde hoje está o Ginásio Tesourinha, que nasceu, em 1914, o compositor Lupicínio Rodrigues.