
Um dos observadores mais atentos do Supremo Tribunal Federal (STF), o jornalista Felipe Recondo não vislumbra mudanças expressivas no curto prazo para a Corte. Para ele, a chegada de Edson Fachin à presidência, em que pesem as expectativas sobre a postura discreta do ministro, não deve representar qualquer guinada no posicionamento do poder.
Em relação ao novo integrante, que será indicado após a aposentadoria antecipada de Luís Roberto Barroso, a tendência é de que a escolha recaia sobre alguém da confiança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — e que não haveria, no radar do Planalto, uma mulher nessas condições.
— Nomes a gente tem de sobra, mas não vemos disposição do presidente para quebrar essa barreira agora, porque o fator primordial é confiança e, pelo jeito, não há nenhuma mulher que tenha a confiança dele a esse ponto.
Autor de dois livros sobre o STF, Recondo afirmou, em entrevista a Zero Hora, que, embora seja alvo de uma forte artilharia de fake news, o tribunal peca ao se comunicar com a sociedade, abrindo margem para questionamentos sobre sua independência. Por outro lado, não acredita que as indicações estejam comprometendo a pluralidade da Corte.
— Podemos nos perguntar se as pessoas têm todos os atributos que se espera de um ministro, mas o tribunal tem funcionado com pluralidade. Não vemos uma Corte em que os presidentes, por conta das indicações, têm maioria sempre.
Nesta entrevista, Felipe Recondo comenta assuntos como:
Confira a entrevista:
O STF ocupa hoje um papel central no debate público no Brasil. Os ministros estão no noticiário todos os dias, despertam paixões e torcidas na população, e as grandes decisões ou partem do Supremo, ou em algum momento passam por ele. Muitas vezes esse é considerado um protagonismo excessivo. Qual é a tua visão?
Nunca o Supremo será protagonista quando os demais poderes estiverem exercendo normalmente as suas atribuições, dando respostas às demandas da sociedade, da economia ou mesmo do governo. O Supremo só aparece, ou aparece mais, quando os outros poderes ou não estão atuando, ou quando tem algum conflito entre eles.
Quando houve a Operação Sanguessuga e vários deputados foram investigados por corrupção, o Congresso ficou mais acuado politicamente, e o Supremo ganhou proeminência. No governo Bolsonaro, a mesma coisa: um Executivo muito forte, o Legislativo não impunha qualquer restrição ou controle sobre os atos do governo, e o Supremo apareceu. Isso não significa que não devemos analisar e criticar se o Supremo está exagerando.

Houve um momento, sobretudo na época do julgamento do Mensalão, em que o STF era visto como hostil aos governos petistas. Hoje, a Corte é vista como aliada do governo. Como tu enxergas essa relação?
Se olharmos no tempo, o Gilmar Mendes foi o algoz do julgamento do Mensalão. No governo Dilma, ele deu aquela liminar impedindo Lula de ser empossado chefe da Casa Civil e era celebrado pela oposição. Hoje, ele é visto como um aliado. Podemos falar isso também do ministro Barroso. Quando ele entrou no STF, baixou as penas do Mensalão e depois estava ao lado da Lava-Jato. Então, o Supremo às vezes é um eletrocardiograma, pode estar lá em cima ou lá embaixo, dependendo das circunstâncias e dos processos em julgamento.
Especialmente nos últimos anos, o STF é um tribunal que facilita o que está ao lado da governabilidade. Não é um tribunal de oposição. Alguém pode falar que no governo Bolsonaro não parecia assim, mas, se nós olharmos o começo do governo, a gente vai ver que esse é um padrão. Podemos lembrar, por exemplo, quando o Supremo flexibilizou a Lei de Responsabilidade Fiscal para o governo fazer frente às necessidades da pandemia. A questão é que o governo Bolsonaro quis estabelecer com o Supremo uma relação de conflito, deliberadamente, então isso contamina um pouco.
Em um dos teus livros, tu abordaste a resposta do Supremo às ameaças autoritárias dos últimos anos no país. Durante esse processo, o próprio STF sofreu acusações de autoritarismo — em relação ao inquérito das fake news, às suspensões de perfis nas redes sociais e à relatoria do Alexandre de Moraes, por exemplo. A Corte está sabendo encontrar o limite entre a defesa intransigente da democracia e o excesso?
Ainda não temos o distanciamento de tempo necessário, mas respondendo como jornalista que acompanha o tribunal, acho que em certos momentos, esse limite está sendo ultrapassado. E, se não está, a percepção de todo mundo de que está não é boa e seria bom que o tribunal dialogasse, ouvisse as críticas e respondesse a elas.
São dúvidas que muita gente tem, inclusive professores de Direito, advogados criminalistas e jornalistas. Tem inquéritos, por exemplo, que foram abertos a partir de outros, e a gente se pergunta por que não foram distribuídos para outro ministro. Por que concentrar todos esses processos nas mãos de um único ministro?
O tribunal pode até ter argumentos técnicos para justificar, mas, do ponto de vista institucional, de imagem, talvez não fosse a melhor opção. É claro que existe uma máquina de fake news atacando o tribunal, mas também existe a crítica legítima, e o tribunal deveria lidar melhor com esses questionamentos e ser mais dialógico com a sociedade.

Alguns ministros já sinalizaram, publicamente inclusive, apoio à proposta de reduzir as penas dos condenados pela trama golpista. Seria um sinal ruim endossar isso depois de dar uma resposta tão firme a esse episódio?
É complicado a gente naturalizar que o Supremo esteja participando de uma negociação política em torno de uma legislação criminal em um processo que está julgando. Sabemos que os poderes conversam, os ministros conversam com a política, mas já tem algo esquisito quando vemos o Supremo avalizar a priori uma mudança legislativa.
O Congresso tem a prerrogativa de avaliar as circunstâncias e dizer qual a melhor política pública. Já vi professores de Direito dizendo que a legislação deveria ser alterada para evitar a confusão entre os crimes de golpe de Estado e tentativa de abolição do Estado democrático, por exemplo, e isso faria com que as penas caíssem. Se o Congresso decidir que é melhor baixar as penas e não fizer isso de forma desproporcional, o Supremo não terá espaço para fazer muita coisa.
O voto do ministro Luiz Fux no julgamento do núcleo crucial foi emblemático e causou muita divisão. Como tu avalias o posicionamento dele?
Tem avaliações diferentes e defensáveis. A minha é de que o voto divergente do ministro Fux, mesmo que criticável do ponto de vista técnico, político e institucional, dá legitimidade para o julgamento, porque significa que todas as posições estão sendo ouvidas e consideradas.
Esse tipo de divergência interna é normal, tivemos no julgamento do Mensalão. Em vários outros temas julgados na Corte, essa divergência também existe, mas não chama tanta atenção. Nesse caso, por ser um processo penal e com forte contaminação política, acaba gerando essa surpresa. Para mim, é mais do mesmo.

O ministro Alexandre de Moraes é, talvez, a figura mais visada da República hoje. De maneira geral, em que ponto tu achas que ele acerta e em que ponto erra?
Do que foi julgado até agora, por mais que haja crítica sobre algumas decisões em relação à liberdade de expressão, e nunca o julgamento de liberdade de expressão é fácil, acho que, na soma final, ele paga um preço caro por ter sido escolhido para relatar essa investigação. Acabamos concentrando muita atenção nele, mas essa é uma obra conjunta.
Houve a investigação da Polícia Federal, a investigação do Ministério Público, a própria delação do Mauro Cid. E a maior parte das decisões dele teve o apoio da maioria do Supremo. A avaliação que podemos fazer é de que as instituições do país estão dizendo que ele está acertando mais do que errando.
Quando tu falas sobre a vida dele ser prejudicada, logo me remete a algo que talvez não tenha precedente, que foi a pressão do governo dos EUA sobre o STF para tentar interferir no resultado do julgamento. De alguma forma, tu achas que essa ameaça externa abalou a Corte?
Primeiro é preciso falar de uma ameaça interna que aparece muito pouco. Os ministros e seus familiares receberam muitas ameaças de cidadãos brasileiros durante todo esse período. E houve casos de pessoas que partiram para a ação, tentando infligir algum tipo de violência contra eles. Isso é muito grave e precisa ser considerado.
Aí vem essa ameaça externa, que também é gravíssima, mas, desde o princípio, os ministros demonstraram que não haveria qualquer flexibilização. E o que vemos é que os ministros estão vivendo normalmente.
Se o governo Trump queria fazer algo, realmente não funcionou.
FELIPE RECONDO
Jornalista
Com a chegada de Edson Fachin à presidência, há expectativa de mudança na postura da Corte, já que ele é mais discreto e menos combativo. O que tu esperas desta gestão?
Presidentes têm poderes limitados no Supremo. Nós tendemos a achar que eles conseguem moldar o tribunal às suas próprias circunstâncias e ao seu pensamento, mas eles são apenas mais um dentro de um colegiado. Por mais que o ministro Fachin seja alguém discreto, isso não vai fazer com que os outros ministros deixem de dar entrevistas, de comentar sobre as circunstâncias políticas do país, de participar de eventos patrocinados.
Sinceramente, não acredito na possibilidade de a Corte inteira ser mais discreta. Nas negociações institucionais e políticas que forem necessárias, ele certamente vai ter uma posição mais deferente à política. Ele já demonstrou isso, por exemplo, no julgamento do Marco Civil da Internet, quando disse que o Congresso deveria tratar do assunto. Mas essa não vai necessariamente ser a posição dos demais, então acho que temos que dourar as expectativas em relação à capacidade dele de moldar o tribunal. É improvável que isso aconteça.
Isso vale também para as pautas? O Fachin é muito identificado com movimentos sociais e temas trabalhistas.
O que depende dele essencialmente são os processos de sua relatoria e os processos julgados no plenário físico, que ele define a pauta. Mas, como hoje existem o plenário virtual e outros instrumentos à disposição dos ministros, como as liminares monocráticas e a possibilidade de conciliação, ele não tem o controle absoluto. A gente tenta olhar para o Supremo como algo muito presidencialista, quando nós temos ali outros 10 ministros com poderes grandes. A grande diferença é que hoje o presidente do Supremo é também presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e isso dá a ele outro tipo de poder, mas que nada tem a ver com o Supremo diretamente.

A aposentadoria antecipada do ministro Barroso lhe surpreendeu? Como tu avalias esse movimento?
Embora seja óbvio, é bom a gente lembrar que, quando isso acontece, são pessoas decidindo as suas vidas. Ele falou sobre o cansaço dele e de como a família dele foi exposta. Voltando à questão das ameaças, ocorre que todo mundo foi exposto de forma muito violenta, e o ministro Barroso não estava acostumado a isso.
Como professor e como advogado, ele estava acostumado a um ambiente de mais diálogo e de menos conflito; era uma pessoa acostumada a ser retrucada, mas não atacada. Então, ele teve que lidar nos últimos anos com uma realidade muito diferente do que ele gostaria de conviver. O filho dele teve a vida prejudicada, porque trabalhava nos EUA. O próprio ministro, que é pesquisador em universidades americanas, não pode mais ir aos EUA. Então, realmente tem algo que é pessoal e, quando o ministro prefere privilegiar sua vida e sua saúde mental, não tem muito o que fazer.
Nos dois primeiros mandatos, Lula indicou nomes como Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Eros Grau. No atual, indicou Cristiano Zanin e Flávio Dino. É correto dizer que ele está adotando um critério mais político e menos jurídico agora?
Não acho. Nos primeiros mandatos, a diretriz das escolhas foi transformar o Supremo em um tribunal mais plural. Ele indicou ministros com origens e pensamentos diferentes, e isso não deixa de ser uma decisão política.
O que estamos vendo agora é o presidente escolhendo pessoas mais próximas ou de mais confiança. Mas essa proximidade não significa uma correia de transmissão, que todos vão pensar como ele, tanto que Zanin e Dino às vezes estão em lados opostos. O denominador comum é que são pessoas em quem o presidente tem confiança, inclusive confiança pessoal.
E o Bolsonaro fez o mesmo. Quem não tinha feito foi o Lula, nos primeiros mandatos, e a Dilma.
FELIPE RECONDO
Jornalista
Se a indicação de Lula ficar entre os nomes que são especulados — Jorge Messias, Rodrigo Pacheco e Bruno Dantas —, o que se pode esperar?
Acho que o fator de proximidade entre eles é a disposição para a política. Todos eles, de alguma maneira, têm essa veia de olhar o processo constitucional também por esse prisma da política. Isso significa que o tribunal vai ter uma bancada reforçada com essa disposição para o diálogo com a política. Temos hoje o ministro Gilmar, o Toffoli, o Alexandre, a Cármen Lúcia, o Nunes Marques, todos eles com um diálogo permanente com a política.
Isso não é vício, mas, em certos momentos, a gente percebe uma certa tendência a privilegiar argumentos consequencialistas ou mesmo políticos em relação a argumentos meramente técnicos, e acho que, qualquer que seja a indicação que o presidente faça, ficando nesses três nomes, teremos mais alguém com esse tipo de pensamento.

O Lula sofre pressão de entidades e setores da sociedade para indicar uma mulher para a vaga. Não existe chance de isso ter algum feito?
Nesta vaga, não acredito. É possível que nas próximas isso aconteça, mas esta não. É um problema estrutural, pelo desenho das instituições e da política, as mulheres não conseguirem alcançar esses espaços de poder. Agora estão fazendo listas de nomes de mulheres que poderiam ocupar essas vagas, e eu diria que essas listas são acanhadas, porque há inúmeras professoras, procuradoras, advogadas que estão sendo esquecidas.
Eu mencionaria duas: Cláudia Sampaio Marques, subprocuradora-geral da República que atua no Supremo há décadas e ninguém nunca lembra dela, e Grace Mendonça, que foi ministra da AGU (Advocacia-Geral da União) no governo Temer e sempre muito bem avaliada no Supremo. Nomes a gente tem de sobra, mas não vemos disposição do presidente para quebrar essa barreira agora, porque o fator primordial é confiança e, pelo jeito, não há nenhuma mulher que tenha a confiança dele a esse ponto.
Quando sair o nome, o Lula terá indicado cinco dos atuais 11 ministros. Se considerarmos os indicados pela presidente Dilma, serão sete indicados por governos petistas. Não é problemático tantos ministros indicados por um mesmo grupo político?
O cenário ideal seria termos um pouco mais de pluralidade. Mas veja, estávamos falando do Luiz Fux, que foi indicado pela Dilma e votou pela absolvição do Bolsonaro. O Fachin, em geral, defende trabalhadores em conflitos com empresas. E foi indicado por Dilma, que também indicou o Barroso, com um pensamento completamente diferente nesse aspecto. No julgamento sobre descriminalização da maconha, o Zanin, indicado por Lula, votou junto com André Mendonça.
Então, as indicações têm, na minha visão, funcionado bem. Podemos nos perguntar se as pessoas têm todos os atributos que se espera de um ministro, mas o tribunal tem funcionado com pluralidade.
Não vemos uma Corte em que os presidentes, por conta das indicações, têm maioria sempre.
FELIPE RECONDO
Jornalista
O que tu consideras mais urgente de ser reformado na forma de funcionamento do Supremo?
Uma delas é uma questão regimental: diminuir o poder individual dos ministros para que o tribunal não seja visto o tempo todo como um tribunal fruto de individualidade. Estamos falando das decisões monocráticas, mas eu acrescento os processos estruturais ou mesmo conciliações, que deveriam ter algum tipo de participação maior da colegialidade.
A outra é que o tribunal precisa dialogar melhor com a sociedade. E eu acho que já dialogou melhor. Mesmo que os ministros não dessem tantas entrevistas, havia um esforço maior de ouvir as críticas. Não é rebater as críticas, é dialogar com elas. O tribunal deveria ter boas respostas e explicações para que a sociedade não olhasse com a desconfiança que hoje olha.
Nesse sentido, o televisionamento, que não é uma realidade em todas as supremas cortes do mundo, é algo que contribui para esse diálogo ou mais atrapalha do que ajuda?
Acho que contribui. Eu já ouvi ministros, durante os votos, dizerem: "Preciso explicar para quem está nos assistindo". O televisionamento pode ter outros tipos de consequência. Algumas pessoas acham que os votos aumentaram, que os ministros acabam dialogando menos e de forma menos orgânica, mas eu não acredito que a sociedade brasileira, inclusive com as desconfianças que tem em relação a todos os poderes, aceitaria que o tribunal voltasse a decidir de portas fechadas.


